O ROMANCE HISTÓRICO CONTEMPORÂNEO:
REVISITANDO O PASSADO
ARTÍSTICO-LITERÁRIO BRASILEIRO ATRAVÉS DE ANA
EM VENEZA, DE JOÂO SILVÉRIO TREVISAN
Rafaela
Cristina Coelho (PIVIC/UFG)
Orientadora: Profa. Dra. Tarsilla Couto
de Brito (D/UFG)
RESUMO: O objetivo maior deste
trabalho é refletir sobre o conceito de “romance histórico contemporâneo”. Para
tanto, partiremos dos estudos de alguns dos principais especialistas
brasileiros no assunto, dentre eles, Antônio R. Esteves (2010), sem no entanto
ignorar Seymour Menton (1983) e Linda Hutcheon (1990), em seus estudos de
narrativas de extração histórica recorrentes no âmbito americano. Contextualizaremos
a reflexão teórica relacionando-a à análise da obra de João Silvério Trevisan, Ana em Veneza (1994), exemplo de romance
histórico contemporâneo que traz ricas e provocadoras questões à historiografia
da arte brasileira.
“A imagem de todos aqueles
objetos de Pompeia iam e vinham na tua lembrança, e tu te davas conta de como
as culturas são relativas: o que hoje é execrado e escondido, naqueles tempos
era adorado e exposto. O belo de ontem tonava-se indecente de hoje. Estaria a
humanidade de fato progredindo ou aqueles – por nós considerados – retrógrados
seres de antanho teriam graves lições de civilização a nos passar?”*
Em solo americano, a considerável
recorrência de romances históricos no período contemporâneo, tem levado os
especialistas na área, desde os anos 80 do século passado, a debruçarem-se sobre
o fenômeno. Como resultado, temos vários estudos importantes que fazem
referência ao novo tipo de romance histórico aqui produzido e às suas
características mais marcantes, salvo algumas divergências no que tange à
nomenclatura adotada por cada estudioso: “Romance histórico contemporâneo” para
Antônio Roberto Esteves, “Novo romance histórico” para Angel Ráma, Seymour
Menton e Fernando Aínsa, “Metaficção historiográfica” para Linda Hutcheon.
Considerando o contexto europeu,
(do qual aliás, importamos a fórmula do romance histórico durante o século
XIX), o estudo de György Lukács, publicado no livro intitulado O Romance Histórico, de 1937, praticamente
pôs fim às discussões sobre o surgimento e apogeu do gênero no século XIX,
depois de desvendar a fórmula do romance histórico genuíno e eleger Ivanhoe (1819), de sir Walter Scott,
como obra-prima representante do gênero. (LUKÁCS apud ESTEVES, 2010, p. 31-32).
Acontece que, depois de florescer
no velho continente com obras assinadas por autores consagrados, como Leon
Tolstói, Gustav Flaubert, Victor Hugo e Alexandre Dumas, e nas Américas, com um
José de Alencar por exemplo, o romance histórico andou sumido dos holofotes
desde o fim do século XIX e passou por algumas transformações, até ser retomado,
em âmbito latino-americano, a partir da segunda metade do século XX, totalmente
repaginado, adquirindo uma nova forma, que distancia-se dos pressupostos sobre
os quais se assentam esse modelo de romance histórico tradicional.
Em O romance histórico brasileiro contemporâneo (1975-2000), um
importante estudo sobre o tema, publicado em 2010, Antônio R. Esteves traça um
panorama do surgimento desse subgênero no Brasil. De acordo com o autor, acompanhando
a evolução dos conceitos de romance e de saber histórico, ocorridas na primeira
metade do século XX, o romance histórico, – em decorrência de sua natureza
híbrida, que envolve o discurso ficcional e o histórico – passou por mudanças
significativas, das quais ele destaca o
fato de que o ‘histórico’ deixou de ser pano de fundo,
ambiente apenas, e vem se tornando o cerne mesmo dos romances históricos desde
as últimas décadas do século XX. A visão romântica de mundo, proveniente do
modelo de romance histórico de Scott, cedeu lugar a um profundo questionamento
e busca de identidade no fato histórico em si, que, sob a óptica do romancista,
é reconstruído ficcionalmente. (ESTEVES, 2010, p. 34-35)
Para ilustrar a fala de Esteves
com o romance eleito – Ana em Veneza
(1994), de João Silvério Trevisan –, chamamos atenção para a forma como ele é
construído em torno do questionamento das imagens de identidade, seja de identidade
nacional ou ainda, de identidade pessoal dos protagonistas, para os quais o
exílio constitui o estado perfeito para que esse questionamento aflore.
Seymour Menton, no livro La nueva novela histórica de América Latina:
1949-1992 (1993), adota a expressão “novo romance histórico” – que teria
sido usada pela primeira vez por Angel Ráma, em 1981 – para designar o fenômeno
em questão. (MENTON apud ESTEVES, 2010,
p. 35). Neste estudo, Menton elabora uma
lista em que enumera seis características que são geralmente reconhecidas no
novo romance histórico. Destas, destacamos duas características que
corroboramos com os traços do romance de Trevisan.
A primeira característica encontra-se
arraigada à uma concepção filosófica comum no século XX, que entende que a
verdade histórica ou a realidade é praticamente impossível de ser captada. De
igual modo, a concepção tradicional de tempo linear dá lugar à uma visão
cíclica do tempo. “Paradoxalmente, seu
caráter de imprevisibilidade faz com que possam ocorrer os acontecimentos mais
absurdos e inesperados”. (MENTON apud
ESTEVES, 2010, p. 38) Na quarta parte de Ana
Em Veneza, intitulada “Berlim, a passagem”, o leitor é surpreendido por um salto
temporal que leva Alberto Nepomuceno de uma estação de trem em Berlim em 1891
para um aeroporto na mesma cidade, só que em 1991. No avião em decolagem,
Alberto, em monólogo, traz para o contexto do fim do século XX, as mesmas
questões que são discorridas ao logo da obra, tais como o significado da
história, os rumos da arte no novo século, o que definiria a identidade
brasileira, etc.
A segunda característica que selecionamos diz respeito
à ficcionalização de personagens históricos bem conhecidos. Ao contrário da
fórmula de Scott, que os relegava ao pano de fundo da narrativa em detrimento
de personagens ficcionais, no novo romance, os personagens históricos costumam
ser trazidos para o centro da fábula. (MENTON apud ESTEVES, 2010, p. 38). Júlia da Silva Bruhns (1851-1923), escritora
teuto-brasileira, mais conhecida por ser a mãe do escritor alemão Thomas Mann; Ana,
de origem africana, que trabalhava como criada da família Bruhns e Alberto
Nepomuceno (1864-1920), músico e compositor de música erudita brasileira, são
três personagens empíricos, que viveram durante a segunda metade do século XIX
e são levados para o ambiente ficcional de Ana
em Veneza como protagonistas da narrativa.
Linda Hutcheon (1991, p. 21), prefere chamar esse novo
modelo de romance histórico de “metaficção historiográfica” porque, segundo
ela, suas características mais marcantes são a auto-reflexividade e, ao mesmo
tempo e de maneira paradoxal, a apropriação de acontecimentos e personagens
históricos. Sendo assim, a metaficção historiográfica incorpora três domínios,
“ou seja, sua autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações
humanas (metaficção historiográfica) passa a ser a base para seu repensar e sua
reelaboração das formas e dos conteúdos do passado”. (HUTCHEON, 1991, p. 22)
O uruguaio Fernando Aínsa, que aborda
o tema através do ensaio “La nueva novela histórica latinoamericana” (1991),
parte da análise de uma série de obras de autores latino-americanos desde a
década de 1980 e constata que tais obras “apresentam uma ruptura em relação a
um modelo estético único. Esses novos romances apresentam uma polifonia de
estilos e modalidades, baseada, especialmente na fragmentação dos signos de
identidade nacionais, realizadas a partir da desconstrução dos valores
tradicionais”. (Aínsa apud ESTEVES, 2010, p. 36)
De modo geral, os estudiosos do
subgênero são unanimes em concordar que os romances históricos contemporâneos propõem-se a
desestabilizar a rigidez imposta pela história oficial através da releitura do
passado sob vários aspectos: desde o político e social até o artístico, e por
conseguinte, o literário. Dentro desse conjunto, temos Ana em Veneza, que revisita as décadas finais do século XIX, fazendo
reviver personagens e imagens que, de alguma forma, contribuíram ou estiveram
ligados à construção de nossa identidade. Apesar da pluralidade de temas
que são tratados ao longo de suas quase 600 páginas, pressupõe-se que o fator
comum que está na base da construção do romance, unindo o prelúdio e as quatro
partes, é a procura por imagens e sentimentos que possam melhor exprimir a ideia
de identidade brasileira.
No centro dessa busca está Alberto
Nepomuceno que, através da sua música, representa a tentativa do artista em
exprimir em sua arte a identidade nacional, divido entre o tributo à tradição e
a procura por novas formas. De modo geral, ao analisar o período em que viveu e
produziu o músico, entre as últimas décadas do século XIX e as duas primeiras
décadas do século XX, tendo ainda por parâmetro a Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, é possível
visualizar alguns dos problemas que se apresentam ao compositor e sua arte, que
podem ser vistos como extensivos à literatura que se produzia naquela época no
Brasil. O mais significativo deles diz respeito à nossa dependência cultural em
relação à Europa.
Considerando
que a literatura produzida em território brasileiro nos primeiros séculos de
colonização, desenvolveu-se enquanto ramificação da literatura portuguesa, e
por isso herdeira dos padrões estéticos europeus, Candido assinala o Romantismo
brasileiro como o primeiro momento decisivo no processo de consolidação de
nossa literatura enquanto sistema relativamente autônomo, período em que a
literatura produzida no Brasil teria alcançado, em termos estéticos, um
equilíbrio entre as formas importadas da Europa e os temas retirados de nossa
realidade local. (CANDIDO, 1981, p. 24).
Na música e
na literatura, o romance O Guarani,
de José de Alencar, que inspirou Carlos Gomes a compor o libreto homônimo, pode
ser tido como exemplo dessa busca de identidade nacional baseada no mito do
herói indígena. No prelúdio podemos visualizar os problemas que Nepomuceno
reconhece em relação às respostas do indianismo para a caracterização da
nacionalidade brasileira. (TREVISAN, 1994, p. 33)
Sob essa
perspectiva, o romance é inconclusivo, no sentido de que não prioriza nenhuma
representação de identidade em detrimento de outra. Antes, os temas da
sensualidade, da saudade, da natureza exuberante, do malandro, do índio, do
sertanejo, enfim, imagens, tipos e sentimentos tidos como típicos
representantes de nossa identidade nacional serão desessencializados.
Muito provavelmente, um dos
maiores legados, não só de Ana em Veneza,
mas do subgênero romance histórico contemporâneo como um todo, seja a tentativa
de tentar compreender e dar sentido ao nosso passado artístico-literário, através
da proposta de encarar a noção de identidade enquanto contingência histórica,
contrariando a tentadora concepção que estava por trás de nossos manuais
literários e que vigorou até meados do século passado, de tratar identidade
como um conceito de essência. Sabemos que essa crítica às essências não é
novidade no campo da crítica literária. Temos em Said um de seus precursores,
com obras como Cultura e Imperialismo
(2011), mas chamamos a atenção para a proposta inovadora do romance histórico
contemporâneo em trazê-la como uma proposta estética, propiciando variados e
produtivos desdobramentos dessas discussões.
REFERÊNCIAS
AINSA,
F. La nueva novela histórica
latinoamericana. Plural, Caracas, n. 240, p. 82-85, mar. 1991.
CANDIDO,
A. Formação da literatura brasileira:
momentos decisivos. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. 2 v.
ESTEVES.
A. R. Considerações sobre o romance
histórico (no Brasil, no limiar do século XXI). Revista de literatura,
história e memória. v.4. n. 4, p. 53-66, 2008.
________. O romance histórico contemporâneo (1975-2000). São Paulo: Editora
Unesp, 2010.
HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo: história,
teoria, ficção. Trad.: Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, 1979-1992. México: FCE,1993.
SAID, E. W. Cultura e imperialismo.
Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
TREVISAN, J. S.. Ana
em Veneza. São Paulo: Círculo do Livro, 1994.
Nenhum comentário:
Postar um comentário