domingo, 17 de abril de 2016

RESUMOS DAS COMUNICAÇÕES DO I ENCONTRO DE CRÍTICA E TRADUÇÃO DO EXÍLIO



ANÁLISE E CRÍTICA DA POÉTICA “PÓS-” (COLONIAL/MODERNA) NA TRADUÇÃO
DOS CONTOS NO NUTS E RECIPE FOR A STONE MEAL DE AMA ATA AIDOO

Rodrigo Rodrigues Martins[1] (PIBIC – UnB)

A estruturar o processo tradutório de três obras contemporâneas, apresentam-se aqui os alicerces teóricos de um projeto de tradução descentrado e instituído na diferença. Amparados na leitura e crítica de textos referência em estudos pós-coloniais, pós-modernos e da tradução, nos instrumentamos para traduzir três textos ditos pós-coloniais -  discutimos a problemática mais à frente. São estes: os contos No Nuts e Recipe for a Stone Meal, no livro Diplomatic Pounds & Other Short Stories(2012) de Ama Ata Aidoo, e o ensaio teórico filosófico Is the Post – in Postmodernism the Post – in Postcolonial? (1991) de Kwame Anthony Appiah.
De um lado, nos amparamos nas noções e conceitos de teorias contemporâneas da tradução para enfrentar as questões que emergem no ato de traduzir. Do outro, a tradução (práxis) põe à prova a aplicabilidade – senão permeabilidade – destes conceitos no escrever destas obras em um outro sistema linguístico. O método não dissocia a teoria da prática; pelo contrário, vale-se de elementos e resultados da última - aqui exemplificados por excertos das traduções -  para se constituir, precisamente no espaço de diálogo e confronto da dualidade teoria-prática. Por esta razão, trabalhamos o embasamento teórico sempre em contato com a tradução, em um movimento do abstrato ao material, do material ao abstrato.

SOBRE OS AUTORES
Christina Ama Ata Aidoo é escritora e professora universitária. Nasce em Saltpond, Gana, 1942. Filha da realeza Fante (Akon), cresce em Saltpond (sul de Gana). Em 1964, forma-se em Bacharelado em Artes em Inglês (Arts in English) na Universidade de Gana (Legon). No mesmo ano, publica o primeiro romance, Dillema of a Ghost (1964). Foi, ainda, Ministra da Educação em 1982 e tem 11 livros publicado até esta data.

Kwame Anthony Appiah nasce em 1954 em Londres, Inglaterra e cresce em Kumasi, Gana. É filósofo, teórico da cultura, romancista e professor universitário, principalmente nos Estados Unidos – já lecionou em Princeton, NYU, Yale, Harvard, Cornell, e atualmente leciona na Duke University em Durham, North Carolina.


 ANALISE POÉTICA E ESTILÍSTICA DAS OBRAS

Em Poética do Traduzir (2010), Henri Meschonnic nos propõe uma nova forma de pensar a tradução. Segundo o autor, esta não se resumiria a uma operação de passagem de uma língua para a outra ou de uma cultura para a outra; tampouco seria um instrumento de comunicação, servidor das transmissões de dados ou referentes. Pelo contrário, nos propõe pensá-la como uma poética. E para tanto, deve-se ter o discurso (da ordem do contínuo) como unidade de tradução, não mais o signo linguístico (da ordem do descontínuo).
Para analisar a poética e o estilo dos textos de Aidoo e Appiah, faz-se necessário, primeiro, apurar estes conceitos. Na concepção de Meschonnic, a estilística se faz na língua e a poética na linguagem. A língua, enquanto sistematização das falas, é regida (e constituída) por um conjunto de regras gramaticais e sintáticas; ela é da ordem do descontínuo, e tem o signo linguístico como sua unidade.  De tal modo, a estilística opera sobre/na língua e em suas regras. Diversamente, a poética se estabelece na apropriação da linguagem por um sujeito. É particular (individual), actancial, marcada no tempo (histórica) - da ordem do contínuo.
Orientados por essas noções, apresentamos uma síntese do estilo e poética de cada um dos dois autores. A escrita de Aidoo é marcada por longos parágrafos de narrativa, estruturados por curtas frases metonímicas e entremeados à ricos diálogos. Embora escritos em Inglês, os contos trazem expressões, termos e onomatopeias em línguas do grupo etnolinguístico Akan[2] e em Francês. Percebe-se, ainda, a interferência destes sistemas linguísticos na sintaxe da língua inglesa, além dos desvios à norma do standard english (Inglês coiné), muitas vezes empregados pela autora para assemelhar os dizeres das personagens à fala local – usando de contrações, omissões, gírias, onomatopeias, entre outros.
Nas estórias, evidencia-se a poética realista da autora ganense -  na sua recusa em relativizar, reduzir ou amortizar as dificuldades cotidianas do povo ganense. É especialmente notório no conto Receita para uma Refeição de Pedras [Recipe for a Stone Meal in Diplomatic Pounds & Other Short Stories (2012) – Tradução nossa]. Este narra a história de Sibi, mãe que se dirige à um campo de refugiados em busca de atendimento médico para seus filhos, que estão enfermos – senão morrendo - de fome. Em duas páginas, a autora esboça a gravidade das questões de gênero e de raça no seu país, em uma sociedade de valores ainda marcadamente colonialistas (questão que discutimos mais adiante). Em poucas palavras, Aidoo nos abre mundos inteiros.
O estilo de Appiah é outro. O ganense ensaia suas ideias em longas frases, longos parágrafos, com muitos conectores lógicos, orações coordenadas e subordinadas. Usa de termos e expressões em outras línguas, muitas vezes criando palavras (neologismos) ao traduzir expressões do italiano, do latim e, principalmente, do Francês para o Inglês. Sua poética é também realista: nada eufêmico, costura em seu texto uma crítica aos paradigmas conceituais do pós-modernismo e da pós-colonialidade, das reduções que estas categorias-modelos operam na leitura e, portanto, na tradução, das obras africanas e de obras pós-coloniais como um todo. Está sempre a desestabilizar os essencialismos.

ANALÍTICA DA TRADUÇÃO E A EDUCAÇÃO À ESTRANHEZA

Em A Tradução e a Letra, ou, O Albergue Do Longínquo (2007), Antoine Berman apresenta uma análise crítica dos processos que acometem à maior parte das traduções no ocidente. No percurso, o autor nos propõe uma analítica (análise e destruição) da tradução, para desestabilizar e desconstruir o pensamento ocidental universalista. Nas suas palavras:A analítica da tradução é a crítica do etnocentrismo, do hipertextualismo e do platonismo da figura tradicional da tradução – no Ocidente. Ela estuda esses três traços fundamentais nas suas características gerais, e as formas concretas pelas quais eles se manifestam numa tradução” (BERMAN, 2007, pág.26).
Berman nos propõe a não-naturalização da forma do texto original na tradução. Impelidas pelo pensamento etnocêntrico, grande parte das traduções no Ocidente domesticam a letra do original, seja para deixá-lo mais fácil ao leitor, seja para conservar a língua que o recebe, sem alterá-la.  O caminho para se traduzir o discurso do outro em Berman é a tradução da Letra. Traduzindo-se não só as palavras, mas as construções sintagmáticas, os jogos de significantes (aliterações, repetições, omissões, inversões etc) e o ritmo, nos abrimos, e abrimos nossa língua, para essas manifestações poéticas inéditas.
Neste processo, devemos também nos educar para o estranho, para o outro. Como diz Berman “Precisa-se, antes, como no caso da ciência, de uma educação à estranheza"(BERMAN, 2007, pág. 66). Deste pensamento, desponta a segunda versão da tradução de um excerto (ver tabela 1), onde não naturalizamos as construções, o jogo de significantes ou a expressão idiomática what on Earth.

Tabela 1 - Excerto da Tradução de “Is the Post –
in Postmodernism  the Post – in Postcolonial? (1991) – pág. 339
Original
Tradução – Versão 01
Tradução – Versão 02
Kouakou may judge other artists by his own standards (what on Earth else could he, could anyone, do save make no judgment at all?), but to suppose that he is unaware  that there are other standards within Africa (…)

Kouakou pode até julgar outros artistas pelos seus próprios parâmetros (o que diabos poderia ele, ou qualquer outro, fazer além de não emitir qualquer julgamento?), mas supor que ele não está ciente de que existem outros parâmetros na África (...)
Kouakou pode julgar outros artistas pelos seus próprios parâmetros (onde mais na Terra poderia ele, ou qualquer outro, salvar-se de fazer todo e qualquer julgamento?), mas supor que ele não está ciente de que existem outros parâmetros na África (...)


ESTÉTICA DA INTERLINGUAGEM

Em Tradução e criação interlíngual na zona de contato: escrita limítrofe no Quebec[3], Sherry Simon apresenta uma reflexão sobre a escrita, estética e tradução de obras literárias contemporâneas em zonas de contato cultural e linguístico. Segundo a autora, a estética interlinguística ou da interlinguagem [aesthetics of interlanguage], o escrever em duas ou mais línguas no mesmo texto, é característica das obras do Quebec e outras zonas limítrofes.
Os textos de Appiah e Aidoo também incorporam essa estética interlinguística. Escrevem o Inglês com e por meio de outras línguas, de outras linguagens. Para preservar esse aspecto fundamental ao texto na tradução, uma estratégia possível em determinados momentos é a não-tradução[4] de termos e expressões em uma língua alheia (extra) ao par linguístico com que se trabalha – neste caso o Francês.
No exemplo abaixo, percebe-se como na primeira versão da tradução a tradução descontruímos essa estética ao traduzir a expressão em Francês “en route” para “à caminho”. Na primeira versão, a marca francesa é absolutamente apagada. Por esta razão, decidimos por não traduzi-la, recriando a estética de interlinguagem na versão 02 – agora do Francês com o Português:

Tabela 1 - Excerto da Tradução de  Is the Post –
in Postmodernism  the Post – in Postcolonial? (1991) – pág. 341
Original
Tradução – Versão 01
Tradução – Versão 02
The influence of the Western world is revealed in the clothes and bicycle of this neo-traditional Yoruba sculpture which probably represents a merchant en route to market

A influência do mundo ocidental se revela nas roupas e na bicicleta desta escultura Yoruba neo-tradicional que provavelmente representa um comerciante a caminho do mercado.
A influência do mundo ocidental se revela nas roupas e na bicicleta desta escultura Yoruba neo-tradicional que provavelmente representa um comerciante en route do mercado.


O “PÓS-“ EM PÓS-MODERNO E PÓS-COLONIAL

Em Is the Post- in Postmodernism the Post- in Postcolonial?  [Será o Pós – em Pós-modernismo o Pós - em Pós-Colonial? – Tradução nossa] Appiah reflete o paradigma da pós-modernidade, da pós-colonialidade e a commoditização da obra de arte. A tese é efetiva para pensar/questionar toda e qualquer análise puramente política destas problemáticas, enquanto demonstra a inconsistência (ou não ocorrência) histórica destes paradigmas, partindo do colonialismo e da modernidade na visão Weberiana.
 Politicamente, a pós-colonialidade poderia ser definida pelo momento histórico em que se transcendem os regimes coloniais – o pós-independência. Entretanto, não se percebe essa libertação e/ou liberação do colonialismo no âmbito da cultura e, principalmente, da vida dos habitantes destes locais. Similarmente, quando analisada sob uma perspectiva temporal positivista, a pós-modernidade estabeleceria a superação do paradigma ocidental moderno - e, portanto, dos seus valores e ideias – em todos os domínios onde fosse adotada. Haveria, então, uma superação da racionalidade universal, a secularização da religião e a extinção de autoridades carismáticas em todos os regimes (ditos) pós-modernos. Novamente, esta teoria (e modelo) não se comprova historicamente, a revelar-se nos discursos, na arte, na religião e nas produções literárias do período pós-independência nas ex-colônias.
Emerge, neste contexto, uma questão essencial: se o pós-colonial não instituiu de fato uma superação do colonialismo, e o pós-moderno não suplantou todos os valores modernos, qual é o valor do termo (prefixo) “pós-” diante destes conceitos? Essa problematização terá sua implicação direta no processo de tradução, enquanto suscita uma crítica à duvidosa estabilidade ontológica e fixidez de sentidos destes conceitos – os quais Appiah desestabiliza a todo momento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A leitura e a crítica de textos referência em estudos pós-coloniais, pós-modernos e da tradução nos apontam as inconsistências de paradigmas conceituais universalistas, como o pós-moderno e o pós-colonial. Nos prestamos a refletir e desconstruir as reduções que estes paradigmas operam sobre obras engendradas nestas categorias. Contudo, não buscamos com isso construir novos pontos-comuns na tradução, tampouco uma teoria para substituir todas as anteriores. Pelo contrário, instalados no espaço do outro e da diferença, suscitamos o diálogo e o confronto de uma multiplicidade de conceitos.
Da fundamentação teórica recém-apresentada, da análise estilística e poética das três obras, e das problematizações levantadas ao longo do processo tradutório, constitui-se um projeto de tradução "pós-", que abre espaço, com um gesto poético, para a análise e recriação linguística de duas poéticas em devir: a poética singular de Ama Ata Aidoo e de Kwame Anthony Appiah.

BIBLIOGRAFIA

AIDOO, Ama Ata. “No Nuts”, in Diplomatic Pounds & Other stories. Oxfordshire, UK: Ayebia Clarke Publishing Limited, 2012.

AIDOO, Ama Ata. “Recipe For A Stone Meal”, in Diplomatic Pounds & Other stories. Oxfordshire, UK: Ayebia Clarke Publishing Limited, 2012.

APPIAH, Kwame Anthony. Is the Post- in Postmodernism the Post- in Postcolonial? in Critical Inquiry Vol. 17, No. 2 (Winter, 1991), pp. 336-357. Chicago, US: The University of Chicago Press, 1991.

BASSNETT, S. Post colonial Translation: theory & practice. Nova Iorque, EUA, Routledge, 2002.

BERMAN, Antoine.  A tradução e a letra, ou, o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan e Andreia Guerini. Rio de Janeiro, RJ: 7Letras/PGET, 2007.

MESCHONNIC, H. Poética do traduzir. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo, SP, Perspectiva, 2010.

SAID, Edward W.  Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo, SP, Companhia das Letras, 2007.


[1] Graduando de Tradução/Inglês do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília. Bolsista de iniciação científica sob a orientação de Alice Maria de Araújo Ferreira. Estudante-pesquisador do Grupo Tradução Etnográfica e Poéticas do Devir.
[2] AKAN é uma meta-etnia e um grupo etnolinguístico no Golfo da Guinea- atualmente Gana e Costa do Marfim, no oeste da África. Os Akan são a maior meta-etnia e grupo etnolinguístico dos dois países, com uma população de quase 20 milhões de pessoas. A língua Akan é também conhecida como Twi-Fante.
[3] Translating and interlingual creation in the contact zone: border writing in Quebec  - BASSNETT, 2002, pág 66 - Tradução nossa
[4] Non-translation[não-tradução]: O conceito de não-tradução de Jacques Brault, inspirado no conceito de non-poem[não-poema] de Gaston Miron, responde ao apelo da alteridade da cultura de língua inglesa em um gesto-duplo de apropriação e admiração. Na sua obra, o conceito é aplicado na remoção dos títulos das obras, incorporando-os no original(BASSNETT, pág 66 - Tradução nossa)

Nenhum comentário:

Postar um comentário