ANÁLISE
E CRÍTICA DA POÉTICA “PÓS-” (COLONIAL/MODERNA) NA TRADUÇÃO
DOS
CONTOS NO NUTS E RECIPE FOR A STONE MEAL DE AMA ATA AIDOO
Rodrigo
Rodrigues Martins[1]
(PIBIC – UnB)
A
estruturar o processo tradutório de três obras contemporâneas, apresentam-se aqui
os alicerces teóricos de um projeto de tradução descentrado e instituído na
diferença. Amparados na leitura e crítica de textos referência em estudos
pós-coloniais, pós-modernos e da tradução, nos instrumentamos para traduzir
três textos ditos pós-coloniais - discutimos a problemática mais à frente. São estes:
os contos No Nuts e Recipe for a Stone Meal, no livro Diplomatic Pounds & Other Short
Stories(2012) de Ama Ata Aidoo, e o ensaio teórico filosófico Is the Post – in Postmodernism the Post – in
Postcolonial? (1991) de Kwame Anthony Appiah.
De
um lado, nos amparamos nas noções e conceitos de teorias contemporâneas da
tradução para enfrentar as questões que emergem no ato de traduzir. Do outro, a
tradução (práxis) põe à prova a aplicabilidade – senão permeabilidade – destes
conceitos no escrever destas obras em um outro
sistema linguístico. O método não dissocia a teoria da prática; pelo contrário,
vale-se de elementos e resultados da última - aqui exemplificados por excertos
das traduções - para se constituir,
precisamente no espaço de diálogo e confronto da dualidade teoria-prática. Por
esta razão, trabalhamos o embasamento teórico sempre em contato com a tradução,
em um movimento do abstrato ao material, do material ao abstrato.
SOBRE OS AUTORES
Christina
Ama Ata Aidoo é escritora e professora universitária.
Nasce em Saltpond, Gana, 1942. Filha da realeza Fante (Akon), cresce em
Saltpond (sul de Gana). Em 1964, forma-se em Bacharelado em Artes em Inglês (Arts in English) na Universidade de Gana
(Legon). No mesmo ano, publica o primeiro romance, Dillema of a Ghost (1964). Foi, ainda, Ministra da Educação em 1982
e tem 11 livros publicado até esta data.
Kwame
Anthony Appiah nasce em 1954 em Londres, Inglaterra e
cresce em Kumasi, Gana. É filósofo, teórico da cultura, romancista e professor
universitário, principalmente nos Estados Unidos – já lecionou em Princeton,
NYU, Yale, Harvard, Cornell, e atualmente leciona na Duke University em Durham,
North Carolina.
ANALISE
POÉTICA E ESTILÍSTICA DAS OBRAS
Em
Poética do Traduzir (2010), Henri
Meschonnic nos propõe uma nova forma de pensar a tradução. Segundo o autor,
esta não se resumiria a uma operação de passagem de uma língua para a outra ou
de uma cultura para a outra; tampouco seria um instrumento de comunicação, servidor
das transmissões de dados ou referentes. Pelo contrário, nos propõe pensá-la
como uma poética. E para tanto, deve-se ter o discurso (da ordem do contínuo)
como unidade de tradução, não mais o signo linguístico (da ordem do
descontínuo).
Para
analisar a poética e o estilo dos textos de Aidoo e Appiah, faz-se necessário,
primeiro, apurar estes conceitos. Na concepção de Meschonnic, a estilística se
faz na língua e a poética na linguagem. A língua, enquanto sistematização das
falas, é regida (e constituída) por um conjunto de regras gramaticais e
sintáticas; ela é da ordem do descontínuo, e tem o signo linguístico como sua
unidade. De tal modo, a estilística
opera sobre/na língua e em suas regras. Diversamente, a poética se estabelece na
apropriação da linguagem por um sujeito. É particular (individual), actancial, marcada
no tempo (histórica) - da ordem do contínuo.
Orientados
por essas noções, apresentamos uma síntese do estilo e poética de cada um dos
dois autores. A escrita de Aidoo é marcada por longos parágrafos de narrativa,
estruturados por curtas frases metonímicas e entremeados à ricos diálogos. Embora
escritos em Inglês, os contos trazem expressões, termos e onomatopeias em
línguas do grupo etnolinguístico Akan[2]
e em Francês. Percebe-se, ainda, a interferência destes sistemas linguísticos
na sintaxe da língua inglesa, além dos desvios à norma do standard english (Inglês
coiné), muitas vezes empregados pela autora para assemelhar os dizeres das
personagens à fala local – usando de contrações, omissões, gírias, onomatopeias,
entre outros.
Nas
estórias, evidencia-se a poética realista da autora ganense - na sua recusa em relativizar, reduzir ou
amortizar as dificuldades cotidianas do povo ganense. É especialmente notório no
conto Receita para uma Refeição de Pedras
[Recipe for a Stone Meal in Diplomatic Pounds & Other Short Stories
(2012) – Tradução nossa]. Este narra a história de Sibi, mãe que se dirige
à um campo de refugiados em busca de atendimento médico para seus filhos, que
estão enfermos – senão morrendo - de fome. Em duas páginas, a autora esboça a
gravidade das questões de gênero e de raça no seu país, em uma sociedade de
valores ainda marcadamente colonialistas (questão que discutimos mais adiante).
Em poucas palavras, Aidoo nos abre mundos inteiros.
O
estilo de Appiah é outro. O ganense ensaia
suas ideias em longas frases, longos parágrafos, com muitos conectores lógicos,
orações coordenadas e subordinadas. Usa de termos e expressões em outras
línguas, muitas vezes criando palavras (neologismos) ao traduzir expressões do
italiano, do latim e, principalmente, do Francês para o Inglês. Sua poética é
também realista: nada eufêmico, costura em seu texto uma crítica aos paradigmas
conceituais do pós-modernismo e da pós-colonialidade, das reduções que estas
categorias-modelos operam na leitura e, portanto, na tradução, das obras
africanas e de obras pós-coloniais como um todo. Está sempre a desestabilizar os
essencialismos.
ANALÍTICA
DA TRADUÇÃO E A EDUCAÇÃO À ESTRANHEZA
Em A Tradução e a Letra, ou, O Albergue Do
Longínquo (2007), Antoine Berman apresenta uma análise crítica dos
processos que acometem à maior parte das traduções no ocidente. No percurso, o
autor nos propõe uma analítica (análise e
destruição) da tradução, para desestabilizar e desconstruir o pensamento
ocidental universalista. Nas suas palavras: “A analítica da tradução é a
crítica do etnocentrismo, do hipertextualismo e do platonismo da figura
tradicional da tradução – no Ocidente. Ela estuda esses três traços fundamentais
nas suas características gerais, e as formas concretas pelas quais eles se
manifestam numa tradução” (BERMAN, 2007, pág.26).
Berman
nos propõe a não-naturalização da forma do texto original na tradução. Impelidas
pelo pensamento etnocêntrico, grande parte das traduções no Ocidente domesticam
a letra do original, seja para deixá-lo mais fácil ao leitor, seja para
conservar a língua que o recebe, sem alterá-la.
O caminho para se traduzir o discurso do outro em Berman é a tradução da Letra. Traduzindo-se não só as
palavras, mas as construções sintagmáticas, os jogos de significantes (aliterações,
repetições, omissões, inversões etc) e o ritmo, nos abrimos, e abrimos nossa
língua, para essas manifestações poéticas inéditas.
Neste
processo, devemos também nos educar para o estranho, para o outro. Como diz Berman “Precisa-se,
antes, como no caso da ciência, de uma educação à estranheza"(BERMAN,
2007, pág. 66). Deste pensamento, desponta a segunda versão da tradução de um
excerto (ver tabela 1), onde não naturalizamos as construções, o jogo de
significantes ou a expressão idiomática what
on Earth.
Tabela 1 - Excerto da Tradução de
“Is the Post –
in Postmodernism
the Post – in Postcolonial? (1991) – pág. 339
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Original
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Tradução – Versão 01
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Tradução – Versão 02
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Kouakou may judge other artists by his own standards (what on Earth else could he, could anyone, do save
make no judgment at all?), but to suppose that he is unaware that there are other standards within
Africa (…)
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Kouakou
pode até julgar outros artistas pelos seus próprios parâmetros (o que diabos poderia ele, ou qualquer outro, fazer
além de não emitir qualquer julgamento?), mas supor que ele não
está ciente de que existem outros parâmetros na África (...)
|
Kouakou
pode julgar outros artistas pelos seus próprios parâmetros (onde mais na Terra poderia ele, ou qualquer outro,
salvar-se de fazer todo e qualquer julgamento?), mas supor que ele
não está ciente de que existem outros parâmetros na África (...)
|
ESTÉTICA
DA INTERLINGUAGEM
Em
Tradução e criação interlíngual na zona
de contato: escrita limítrofe no Quebec[3],
Sherry Simon apresenta uma reflexão sobre a escrita, estética e tradução de
obras literárias contemporâneas em zonas de contato cultural e linguístico.
Segundo a autora, a estética interlinguística ou da interlinguagem [aesthetics
of interlanguage], o escrever em duas ou mais línguas no mesmo texto, é
característica das obras do Quebec e outras zonas limítrofes.
Os
textos de Appiah e Aidoo também incorporam essa estética interlinguística. Escrevem
o Inglês com e por meio de outras línguas, de outras linguagens. Para preservar
esse aspecto fundamental ao texto na tradução, uma estratégia possível em
determinados momentos é a não-tradução[4]
de termos e expressões em uma língua alheia (extra) ao par linguístico com que
se trabalha – neste caso o Francês.
No
exemplo abaixo, percebe-se como na primeira versão da tradução a tradução
descontruímos essa estética ao traduzir a expressão em Francês “en route” para “à caminho”. Na primeira versão,
a marca francesa é absolutamente apagada. Por esta razão, decidimos por não
traduzi-la, recriando a estética de interlinguagem na versão 02 – agora do
Francês com o Português:
Tabela
1 - Excerto da Tradução de “Is the Post –
in Postmodernism the Post – in
Postcolonial? (1991) – pág. 341
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Original
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Tradução – Versão 01
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Tradução
– Versão 02
|
The influence of the Western world is revealed in the clothes and
bicycle of this neo-traditional Yoruba sculpture which probably represents a
merchant en route to market
|
A
influência do mundo ocidental se revela nas roupas e na bicicleta desta
escultura Yoruba neo-tradicional que provavelmente representa um comerciante a caminho do mercado.
|
A
influência do mundo ocidental se revela nas roupas e na bicicleta desta
escultura Yoruba neo-tradicional que provavelmente representa um comerciante en route
do mercado.
|
O
“PÓS-“ EM PÓS-MODERNO E PÓS-COLONIAL
Em Is the Post- in Postmodernism the Post- in Postcolonial? [Será o Pós – em Pós-modernismo o Pós - em Pós-Colonial? – Tradução
nossa] Appiah reflete o paradigma da pós-modernidade, da pós-colonialidade e a commoditização da obra de arte. A tese é
efetiva para pensar/questionar toda e qualquer análise puramente política
destas problemáticas, enquanto demonstra a inconsistência (ou não ocorrência)
histórica destes paradigmas, partindo do colonialismo e da modernidade na visão
Weberiana.
Politicamente, a pós-colonialidade poderia ser
definida pelo momento histórico em que se transcendem os regimes coloniais – o
pós-independência. Entretanto, não se percebe essa libertação e/ou liberação do
colonialismo no âmbito da cultura e, principalmente, da vida dos habitantes
destes locais. Similarmente, quando analisada sob uma perspectiva temporal
positivista, a pós-modernidade estabeleceria a superação do paradigma
ocidental moderno - e, portanto, dos seus valores e ideias – em todos os
domínios onde fosse adotada. Haveria, então, uma superação da racionalidade
universal, a secularização da religião e a extinção de autoridades carismáticas
em todos os regimes (ditos) pós-modernos. Novamente, esta teoria (e modelo) não
se comprova historicamente, a revelar-se nos discursos, na arte, na religião e
nas produções literárias do período pós-independência nas ex-colônias.
Emerge,
neste contexto, uma questão essencial: se o pós-colonial não instituiu de fato
uma superação do colonialismo, e o pós-moderno não suplantou todos os valores
modernos, qual é o valor do termo
(prefixo) “pós-” diante destes conceitos? Essa problematização terá sua
implicação direta no processo de tradução, enquanto suscita uma crítica à
duvidosa estabilidade ontológica e fixidez de sentidos destes conceitos – os
quais Appiah desestabiliza a todo momento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A
leitura e a crítica de textos referência em estudos pós-coloniais, pós-modernos
e da tradução nos apontam as inconsistências de paradigmas conceituais
universalistas, como o pós-moderno e o pós-colonial. Nos prestamos a refletir e
desconstruir as reduções que estes paradigmas operam sobre obras engendradas
nestas categorias. Contudo, não buscamos com isso construir novos pontos-comuns
na tradução, tampouco uma teoria para substituir todas as anteriores. Pelo
contrário, instalados no espaço do outro e da diferença, suscitamos o diálogo e
o confronto de uma multiplicidade de conceitos.
Da
fundamentação teórica recém-apresentada, da análise estilística e poética das
três obras, e das problematizações levantadas ao longo do processo tradutório, constitui-se
um projeto de tradução "pós-", que abre espaço, com um gesto poético,
para a análise e recriação linguística de duas poéticas em devir: a poética singular de Ama Ata Aidoo e de Kwame Anthony
Appiah.
BIBLIOGRAFIA
AIDOO, Ama Ata. “No Nuts”, in Diplomatic Pounds &
Other stories. Oxfordshire, UK: Ayebia Clarke Publishing Limited, 2012.
AIDOO, Ama Ata. “Recipe For A Stone Meal”, in Diplomatic Pounds & Other stories.
Oxfordshire, UK: Ayebia Clarke Publishing Limited, 2012.
APPIAH, Kwame Anthony. Is the Post- in Postmodernism the Post- in Postcolonial? in
Critical Inquiry Vol. 17, No. 2 (Winter, 1991), pp. 336-357. Chicago, US: The
University of Chicago Press, 1991.
BASSNETT, S. Post
colonial Translation: theory & practice. Nova Iorque, EUA, Routledge,
2002.
BERMAN, Antoine. A
tradução e a letra, ou, o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène
Catherine Torres, Mauri Furlan e Andreia Guerini. Rio de Janeiro, RJ:
7Letras/PGET, 2007.
MESCHONNIC, H. Poética do traduzir. Tradução de Jerusa
Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo, SP, Perspectiva, 2010.
SAID, Edward
W. Orientalismo:
o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Rosaura Eichenberg. São
Paulo, SP, Companhia das Letras, 2007.
[1]
Graduando de Tradução/Inglês do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução
da Universidade de Brasília. Bolsista de iniciação científica sob a orientação
de Alice Maria de Araújo Ferreira. Estudante-pesquisador do Grupo Tradução
Etnográfica e Poéticas do Devir.
[2]
AKAN é uma meta-etnia e um grupo etnolinguístico no Golfo da Guinea- atualmente
Gana e Costa do Marfim, no oeste da África. Os Akan são a maior meta-etnia e
grupo etnolinguístico dos dois países, com uma população de quase 20 milhões de
pessoas. A língua Akan é também conhecida como Twi-Fante.
[3] Translating and interlingual creation in the contact
zone: border writing in Quebec - BASSNETT,
2002, pág 66 - Tradução nossa
[4] Non-translation[não-tradução]: O conceito de
não-tradução de Jacques Brault, inspirado no conceito de non-poem[não-poema] de Gaston Miron, responde ao apelo da
alteridade da cultura de língua inglesa em um gesto-duplo de apropriação e
admiração. Na sua obra, o conceito é aplicado na remoção dos títulos das obras,
incorporando-os no original(BASSNETT, pág 66 - Tradução nossa)
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