A TRADUÇÃO DO
FRANCÊS DA MARTINICA: PARA UMA CRÍTICA MESTIÇA
Partimos da obra Éloge
de la Créolité[2] publicada em 1989
por três escritores martiniquenses, Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau e Raphaël
Confiant. Neste manifesto, eles desenvolvem seus projetos de escrita propondo o
conceito de crioulidade como "o mundo
difratado, mas recomposto, tempestade de significados em um só
significante: uma Totalidade” (BERNABE; CHAMOISEAU; CONFIANT, 1993, 27,
tradução nossa)[3].
Propomos, nesse estudo, discutir as
noções de crioulidade de Chamoiseau, Bernabé e Confiant (1989), crioulização de
Glissant (2005) e mestiçagem de Laplantine e Nouss (2002), noções fundamentais
para entender a formação das identidade-rizomas
e das produções literárias advindas das migrações. O objetivo é desmitificar a
ideia de intraduzibilidade das literaturas de línguas em devir e ressaltar a
importância da autenticidade enquanto característica válida para sua afirmação
no processo histórico, literário, social e político, pois a possibilidade de
tradução de poéticas em devir provem da recusa da concepção de língua como
sistema fechado e hermético abrindo espaço para a interpenetrabilidade provocada
pelos contatos de línguas, e, ser vista como processo criativo de novos
dizeres.
Autores
Os autores Patrick
Chamoiseau, Jean Bernabé, Raphäel Confiant e Édouard Glissant são todos martinicanos.
Fizeram parte de seus estudos na Franças e retornaram à Martinica após o
término da universidade. Hoje, com exceção de Édouard Glissand que faleceu em
2011, são escritores, ensaístas, teóricos e professores universitários.
Crioulização
Glissant cria a palavra crioulização a
partir do termo crioulo e das realidades crioulas. Essa língua é composta,
nascida do contato entre elementos linguísticos absolutamente heterogêneos uns
aos outros. É por esse motivo que o autor afirma que o mundo se criouliza, que
os elementos mais heterogêneos possam ser colocados em relação. Essa percepção
resulta no que, mais tarde Glissant vai definir com “formas de culturas
atávicas e culturas compósitas” (GLISSANT, 2005, p.24).
Glissant
afirma que na crioulização, ao contrário da mestiçagem, os elementos
heterogêneos que são colocados em relação “se intervalorizam”, dito de outra
forma, que não há degradação ou diminuição do ser nesse contato e nessa mistura
de dentro para fora e nem de fora para dentro. Para o autor é possível calcular
os efeitos da mestiçagem por enxertia que originalmente consiste na união dos
tecidos de diferentes plantas. Mas então o que seria a mestiçagem ou a
crioulização? “A crioulização é a mestiçagem acrescida de uma mais-valia que é
a imprevisibilidade” nos diz Glissant e ainda:
Ao contrário da
mestiçagem, a crioulização reage a imprevisibilidade; ela cria nas Américas
microclimas culturais e linguísticos absolutamente inesperados, lugares nos
quais as repercussões das línguas umas sobre as outras, ou das culturas umas
sobre as outras, são abruptas (GLISSANT, 2005, p.21).
É
o surgimento do novo que faz com que um mais um não seja mais dois; como uma
resultante única que permanece inalterada até que outro elemento intervenha e
altere o seu resultado, transformando-o em algo imprevisível. Nesse sentido o
processo de crioulização defendido por Glissant se aproxima do conceito de
mestiçagem de Laplantine e Nouss.
Mestiçagem
No livro A Mestiçagem de Laplantine e Nouss
(2002) os autores apresentam uma abordagem antropológica e ampla sobre o
conceito de mestiçagem, muitas vezes entendido como algo altamente definitivo a
+ b = c. Entretanto, só poderemos pensar de modo valorativo seu conceito,
quando o analisarmos mais profundamente. O termo vem do latim mixtus, (mistura) “aparece pela primeira
vez em espanhol e em português no contexto da colonização” (LAPLANTINE; NOUSS, 2002,
p.7).
O pensamento mestiço se
opõe ao que se identifica com a estabilidade, com o fixo, rejeita aquilo que se
apresenta como mecanicamente e previsivelmente resultante. Reconhecemos o
mestiço por um movimento de tensão, de oscilação-tensão que se manifesta através
de formas provisórias, mas não permanentes. Organizam-se através da alternância
e da mudança. O mestiço pode nascer da profusão de cores, de ritmos, de
sentidos. A existência de vários elementos é o que faz com que o novo seja
conhecido como tal, e não como algo incompleto ou não autêntico.
Crioulidade
A Crioulidade é
definida como uma atitude interior através da qual o escritor antilhano,
consciente de seu ser e de seu meio, pode construir seu mundo. Ela se instituiu
como um movimento teórico-literário. Foi inaugurada em 1989 com a publicação do
Éloge de la Créolité (1989), dos
escritores Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant, e do linguista Jean Bernabé.
Engendrada a partir das ideias de Antilhanidade e Crioulização de Édouard
Glissant, a Crioulidade teve o mérito de formular novas maneiras de observar e
vivenciar a identidade caribenha.
Identidade-Rizoma
O último conceito discutido neste
estudo é o de identidade-rizoma de Glissant. Este conceito inspirado pelos
trabalhos de Deleuze e Guattari, busca formular a noção de identidade múltipla,
heterogênea, ambígua e em processo permanente. Glissant opõe identidade à raiz
única, a identidade-raiz, à identidade-rizoma, ligada aos povos mestiços e aos
fenômenos da crioulização e das migrações. Não é uma ausência de raiz, mas uma
raiz múltipla. Aplicada ao conceito de identidade, que evoca toda identidade
fundada sob um pertencimento ancestral de uma cultura, ao passo que a
identidade-rizoma admite uma identidade múltipla, nascida não do passado, mas
de relações que são tecidas no presente. Ela não admite apenas uma origem.
Texaco
A partir da análise de todos os
conceitos pretendemos fazer um estudo comparativo entre o manifesto e o livro Texaco (1992) de Patrick Chamoiseau,
vencedor do prêmio Goncourt de literatura no mesmo ano. Pretendemos confirmar a
autenticidade da proposta do manifesto crioulo e de uma literatura capaz de se
afirmar a partir das suas próprias características, sem a interferência de uma
visão eurocêntrica colonizadora.
Ponto forte desse romance é a oferta de uma
resistência à hegemonia cultural a partir de características pós-coloniais,
tais como a revisão da História, convite ao questionamento social, a
consideração do diverso.
Considerações
finais
Falar em crioulidade,
mestiçagem e crioulização, implica um discurso plural. Não há enunciação que se
pratique na suspensão, fora de qualquer relação com o mundo; com o outro. Negar
a existência de uma raiz múltipla é negar que é possível construir múltiplos
tipos de conhecimento, de literatura, de discurso. Nenhuma cultura é resultado
de uma soma vazia, é impossível a construção de uma identidade que seja
imaginada na univocidade, na manutenção do mesmo.
A linguagem da tradução
opera no mesmo sentido que a crioulização. A tradução também é imprevisível e
por isso mestiça. É a totalidade-mundo
que encontramos nas traduções. São os múltiplos discursos imbricados em um só
texto. Assim como afirma Glissant “Contra o absoluto do ser, a arte da tradução
contribui para acumular a extensão de todos os sendos e de todos os existentes
do mundo” (GLISSANT, 2005, p.50).
Referências
BERNABÉ, J. ; CHAMOISEAU, P. ; CONFIANT, R., Éloge de la Créolité, Paris :
Gallimard, 1993.
CHAMOISEAU,
P. Texaco. Trad. Rosa Freire
d’Aguiar. Companhia das letras. São Paulo: 1993.
GLISSANT,
E. Introdução a uma poética da
diversidade; tradução de Enilce do Carmo Albergaria Rocha – Juiz de Fora:
Editora UFJF, 2005.
LAPLANTINE,
F.; NOUSS, A.A Mestiçagem. Tradução
de Ana Cristina Leonardo, Lisboa: Institut Piaget, 2002.
______________________. Métissages : De Arcimboldo à Zombi, Paris, Pauvert,2001.
PATTANO, L.
Entretien avec Patrick Chamoiseau. [5 de Janeiro de 2011]. Fort-de-France,
revue mondiale des francophonies. Entrevista concedida a Luigia Pattano.
[1]
Mestranda do Programa de
pós-graduação em Estudos da Tradução – POSTRAD - da Universidade de Brasília -
UnB. Estudante-pesquisadora do grupo Tradução Etnográfica e Poéticas do Devir. E-mail: dyhorrani.beira@gmail.com
[2] Elogio da crioulidade (tradução
nossa).
[3] « Monde diffracté
mais recomposé, un maelström de signifiés dans un seul signifiant : une
totalité »
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