domingo, 17 de abril de 2016

RESUMOS DAS APRESENTAÇÕES DO PRIMEIRO ENCONTRO DE CRÍTICA E TRADUÇÃO DO EXÍLIO



A TRADUÇÃO DO FRANCÊS DA MARTINICA: PARA UMA CRÍTICA MESTIÇA

                                                                                                                   Dyhorrani da Silva Beira[1]

Partimos da obra Éloge de la Créolité[2] publicada em 1989 por três escritores martiniquenses, Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant. Neste manifesto, eles desenvolvem seus projetos de escrita propondo o conceito de crioulidade como "o mundo difratado, mas recomposto, tempestade de significados em um só significante: uma Totalidade” (BERNABE; CHAMOISEAU; CONFIANT, 1993, 27, tradução nossa)[3].

Propomos, nesse estudo, discutir as noções de crioulidade de Chamoiseau, Bernabé e Confiant (1989), crioulização de Glissant (2005) e mestiçagem de Laplantine e Nouss (2002), noções fundamentais para entender a formação das identidade-rizomas e das produções literárias advindas das migrações. O objetivo é desmitificar a ideia de intraduzibilidade das literaturas de línguas em devir e ressaltar a importância da autenticidade enquanto característica válida para sua afirmação no processo histórico, literário, social e político, pois a possibilidade de tradução de poéticas em devir provem da recusa da concepção de língua como sistema fechado e hermético abrindo espaço para a interpenetrabilidade provocada pelos contatos de línguas, e, ser vista como processo criativo de novos dizeres.
Autores
Os autores Patrick Chamoiseau, Jean Bernabé, Raphäel Confiant e Édouard Glissant são todos martinicanos. Fizeram parte de seus estudos na Franças e retornaram à Martinica após o término da universidade. Hoje, com exceção de Édouard Glissand que faleceu em 2011, são escritores, ensaístas, teóricos e professores universitários. 
      
Crioulização
Glissant cria a palavra crioulização a partir do termo crioulo e das realidades crioulas. Essa língua é composta, nascida do contato entre elementos linguísticos absolutamente heterogêneos uns aos outros. É por esse motivo que o autor afirma que o mundo se criouliza, que os elementos mais heterogêneos possam ser colocados em relação. Essa percepção resulta no que, mais tarde Glissant vai definir com “formas de culturas atávicas e culturas compósitas” (GLISSANT, 2005, p.24).
            Glissant afirma que na crioulização, ao contrário da mestiçagem, os elementos heterogêneos que são colocados em relação “se intervalorizam”, dito de outra forma, que não há degradação ou diminuição do ser nesse contato e nessa mistura de dentro para fora e nem de fora para dentro. Para o autor é possível calcular os efeitos da mestiçagem por enxertia que originalmente consiste na união dos tecidos de diferentes plantas. Mas então o que seria a mestiçagem ou a crioulização? “A crioulização é a mestiçagem acrescida de uma mais-valia que é a imprevisibilidade” nos diz Glissant e ainda:
Ao contrário da mestiçagem, a crioulização reage a imprevisibilidade; ela cria nas Américas microclimas culturais e linguísticos absolutamente inesperados, lugares nos quais as repercussões das línguas umas sobre as outras, ou das culturas umas sobre as outras, são abruptas (GLISSANT, 2005, p.21).

            É o surgimento do novo que faz com que um mais um não seja mais dois; como uma resultante única que permanece inalterada até que outro elemento intervenha e altere o seu resultado, transformando-o em algo imprevisível. Nesse sentido o processo de crioulização defendido por Glissant se aproxima do conceito de mestiçagem de Laplantine e Nouss.

Mestiçagem
No livro A Mestiçagem de Laplantine e Nouss (2002) os autores apresentam uma abordagem antropológica e ampla sobre o conceito de mestiçagem, muitas vezes entendido como algo altamente definitivo a + b = c. Entretanto, só poderemos pensar de modo valorativo seu conceito, quando o analisarmos mais profundamente. O termo vem do latim mixtus, (mistura) “aparece pela primeira vez em espanhol e em português no contexto da colonização” (LAPLANTINE; NOUSS, 2002, p.7).
O pensamento mestiço se opõe ao que se identifica com a estabilidade, com o fixo, rejeita aquilo que se apresenta como mecanicamente e previsivelmente resultante. Reconhecemos o mestiço por um movimento de tensão, de oscilação-tensão que se manifesta através de formas provisórias, mas não permanentes. Organizam-se através da alternância e da mudança. O mestiço pode nascer da profusão de cores, de ritmos, de sentidos. A existência de vários elementos é o que faz com que o novo seja conhecido como tal, e não como algo incompleto ou não autêntico.

Crioulidade
A Crioulidade é definida como uma atitude interior através da qual o escritor antilhano, consciente de seu ser e de seu meio, pode construir seu mundo. Ela se instituiu como um movimento teórico-literário. Foi inaugurada em 1989 com a publicação do Éloge de la Créolité (1989), dos escritores Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant, e do linguista Jean Bernabé. Engendrada a partir das ideias de Antilhanidade e Crioulização de Édouard Glissant, a Crioulidade teve o mérito de formular novas maneiras de observar e vivenciar a identidade caribenha.

Identidade-Rizoma
O último conceito discutido neste estudo é o de identidade-rizoma de Glissant. Este conceito inspirado pelos trabalhos de Deleuze e Guattari, busca formular a noção de identidade múltipla, heterogênea, ambígua e em processo permanente. Glissant opõe identidade à raiz única, a identidade-raiz, à identidade-rizoma, ligada aos povos mestiços e aos fenômenos da crioulização e das migrações. Não é uma ausência de raiz, mas uma raiz múltipla. Aplicada ao conceito de identidade, que evoca toda identidade fundada sob um pertencimento ancestral de uma cultura, ao passo que a identidade-rizoma admite uma identidade múltipla, nascida não do passado, mas de relações que são tecidas no presente. Ela não admite apenas uma origem.
Texaco
A partir da análise de todos os conceitos pretendemos fazer um estudo comparativo entre o manifesto e o livro Texaco (1992) de Patrick Chamoiseau, vencedor do prêmio Goncourt de literatura no mesmo ano. Pretendemos confirmar a autenticidade da proposta do manifesto crioulo e de uma literatura capaz de se afirmar a partir das suas próprias características, sem a interferência de uma visão eurocêntrica colonizadora.
 Ponto forte desse romance é a oferta de uma resistência à hegemonia cultural a partir de características pós-coloniais, tais como a revisão da História, convite ao questionamento social, a consideração do diverso.
Considerações finais
Falar em crioulidade, mestiçagem e crioulização, implica um discurso plural. Não há enunciação que se pratique na suspensão, fora de qualquer relação com o mundo; com o outro. Negar a existência de uma raiz múltipla é negar que é possível construir múltiplos tipos de conhecimento, de literatura, de discurso. Nenhuma cultura é resultado de uma soma vazia, é impossível a construção de uma identidade que seja imaginada na univocidade, na manutenção do mesmo.
A linguagem da tradução opera no mesmo sentido que a crioulização. A tradução também é imprevisível e por isso mestiça. É a totalidade-mundo que encontramos nas traduções. São os múltiplos discursos imbricados em um só texto. Assim como afirma Glissant “Contra o absoluto do ser, a arte da tradução contribui para acumular a extensão de todos os sendos e de todos os existentes do mundo” (GLISSANT, 2005, p.50).



Referências

BERNABÉ, J. ; CHAMOISEAU, P. ; CONFIANT, R., Éloge de la Créolité, Paris : Gallimard, 1993.

CHAMOISEAU, P. Texaco. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. Companhia das letras. São Paulo: 1993.
GLISSANT, E. Introdução a uma poética da diversidade; tradução de Enilce do Carmo Albergaria Rocha – Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

LAPLANTINE, F.; NOUSS, A.A Mestiçagem. Tradução de Ana Cristina Leonardo, Lisboa: Institut Piaget, 2002.

______________________. Métissages : De Arcimboldo à Zombi, Paris, Pauvert,2001.

PATTANO, L. Entretien avec Patrick Chamoiseau. [5 de Janeiro de 2011]. Fort-de-France, revue mondiale des francophonies. Entrevista concedida a Luigia Pattano.



[1] Mestranda do Programa de pós-graduação em Estudos da Tradução – POSTRAD - da Universidade de Brasília - UnB. Estudante-pesquisadora do grupo Tradução Etnográfica e Poéticas do Devir.  E-mail: dyhorrani.beira@gmail.com
[2] Elogio da crioulidade (tradução nossa).
[3] « Monde diffracté mais recomposé, un maelström de signifiés dans un seul signifiant : une totalité »

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