domingo, 17 de abril de 2016

RESUMOS DAS COMUNICAÇÕES DO I ENCONTRO DE CRÍTICA E TRADUÇÃO DO EXÍLIO




REDESCOBRINDO LOS GAUCHOS JUDÍOS SOB A PERSPECTIVA DA TRADUÇÃO DESCRIÇÃO

Raphaela Elias XAVIER
Orientadora: Tarsilla Couto de BRITO

Este artigo possui dois objetivos. O segundo depende do primeiro. Inicialmente, pretende-se ler a obra de Alberto Gerchunoff, Los gauchosjudíos, com base nos conceitos de memória e identidade, apresentados por Michael Pollak (1992). Posteriormente, será realizada a tradução comentada de alguns contos selecionados a partir dos conceitos-chave acima mencionados. Como se vê, o objetivo de natureza teórico-crítica está a serviço do objetivo de tradução. Primeiramente, projeta-se apresentar o contexto geral da obra em análise e posteriormente, sua fortuna crítica geral levantando dados como, edições e importância para o cânone.
Subsequentemente, será feita uma resenha expandida dos relatos presentes em Los gauchos judios destacando as principais situações que enfatizam o que há de memória e identidade. Seguidamente, propõe-se justificar e conceituar a tradução descrição à luz dos conceitos de Levi-Strauss (1952), Malinowiski (1978) e Walter Benjamin (2008) apresentados nos textos O paradigma da descrição na tradução etnográfica: Levi-Strauss tradutor em Tristes Tropiques (GAMA, 2010) e A etnografia enquanto tradução: diálogos entre Bronislaw Malinowiski e Walter Benjamin (FERREIRA, 2014). Ao final do trabalho, planeja-se fazer uma tradução descrição de três relatos autobiográficos, Llegada de inmigrantes, Las lamentaciones e La trilla, nos quais reverberam os conceitos de memória e identidade mencionados anteriormente, visto que, a obra não possui tradução para o português.
            A obra analisada está imersa no contexto histórico específico dos finais do século XIX, época marcada por uma forte imigração dos judeus oriundos principalmente da Rússia Czarista. Os judeus começaram a ser intensamente segregados nas grandes cidades pelo governo Czarista de Alexandre III, sendo proibidos de estudar, impedidos de possuir propriedades e também exilados e mantidos em isolamento em pequenas aldeias disseminadas pela Europa Ocidental.
            A partir dessas circunstancias de constante perseguição, algumas associações judaicas foram organizadas com o desígnio de amparar essa comunidade oprimida. Uma delas era a ICA (Jwish Colonization Association), fundada em 1881 e presidida pelo banqueiro Barão Maurice Hirsch Von Gereuth. Dessa maneira, com a ajuda do Barão Hirsch fundaram-se as colônias agrícolas de MoísesVille na província de Santa Fé e Domínguez na província de Entre Rios (Argentina). A finalidade da criação dessas colônias era dar terras aos judeus para que cultivassem, cuidassem e se estabelecessem no que a partir de então seria, para eles, a nova Jerusalém.
            Portanto, o movimento migratório na Europa ocidental motivou vários judeus a construírem uma nova vida na América. Como a obra em análise evidencia, os judeus começaram a saber de informações sobre a “América”, chamada por eles de Novo Mundo, o que enchia seus corações de fantasias, “A la Argentina iremos todos y volveremos a trabajar la tierra, a cuidar nuestro ganado, que el Altísimo bendecirá” (GERCHUNOFF, 1975, p.36). Vale ressaltar que essa visão ideológica da “América” já existia em outras sociedades e países, eles não foram os precursores dessa visão romantizada.
A obra de Alberto Gerchunoff, Los gaúchos judíos, foi publicada inicialmente em 1910, em La Plata, província de Buenos Aires, para homenagear o centenário da Revolução de Maio. A partir desta primeira publicação, Gerchunoff ficou vinculado à importância ideológica do centenário dos acontecimentos revolucionários que iniciaram o processo do surgimento do Estado Argentino. Posteriormente, o livro foi publicado em outros anos e por outras editoras, como a Editorial Sudamericana em 1957, Editorial Milá Buenos Aires em 1988, Editorial Arenal (1990) e, por último, Editorial Aguilar com 8 edições publicadas entre os anos de 1973 a 1975.  É de suma importância destacar a publicação da obra com a editora Aguilar, pois coincidiu como o aniversário de 25 anos da morte do autor e contribuiu também com a volta da obra, já que, segundo o prólogo escrito por Martiniano Leguizamón, se encontrava escassa.
A Enciclopédia Judaica afirma que Los gaúchos judíos é a primeira obra latino-americana que conta e descreve a história da imigração judaica ao que eles consideravam ser o Novo Mundo, além de ser considerada a primeira de valor literário escrita em espanhol por um judeu nos tempos modernos (FRIEDLER, 2002). O livro também ocupa o lugar de número 35 na lista das 100 obras judaicas modernas presentes no cânone judeu, estabelecido pelo National Yiddish Book Center dos Estados Unidos.
É importante salientar, que a obra foi traduzida para 4 idiomas, inglês, alemão, yidish e hebraico. A tradução feita para o alemão foi publicada em 2010 pela editora Hentrich & Hentrich Verlag Berlin para comemorar o Bicentenário da própria editora. O projeto foi coordenado pelo consulado da República Argentina em FráncfortdelMeno e Katholische Hochschulgemeinde com a participação de J.W. Goethe-Universitäte e apresentado pela Dra. Liliana Feierstein.
           Como base para a discussão desta temática, serão utilizados os conceitos de memória e identidade encontrados no texto de Michael Pollak, Memória e identidade social (1992) para unir os acontecimentos que direcionam aos conceitos em destaque presentes nos relatos da obra Los Gauchos Judíos. Na introdução, Pollak inicia dizendo que tratará do problema da ligação entre memória e identidade social, exemplificando ambos os conceitos no âmbito das histórias de vida, chamadas de história oral, o que rapidamente remete aos relatos vivenciados e escritos por Gerchunoff, resenhados logo adiante.
           Destaca-se depois, que a memória se assemelha a um acontecimento individual, intimo, mas que logo, se descobriu que é também um fenômeno coletivo e social, quer dizer, é um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes (POLLAK, 1992). É importante entender a diferença entre memória social e memória coletiva; a primeira remete aos acontecimentos vividos pessoalmente e a outra aos acontecimentos chamados de “vividos por tabela”, isto é, vividos no contexto social em que o indivíduo está inserido (POLLAK, 1992, p.5). Michael explica que é possível adquirir memórias sem ter estado fisicamente inserido em um contexto x; segundo ele, as memórias podem ser herdadas a ponto de nos sentirmos parte delas.
           Gerchunoff é um exemplo dessa memória herdada, pois ele não esteve fisicamente presente em muitos dos ataques aos judeus quando os progroms[1] se iniciaram na Rússia, mas sua família sim, e desde pequeno contava que seu pai relatava e sofria com esses acontecimentos (GERCHUNOFF, 1975). Portanto, segundo Philippe Joutard, podem existir acontecimentos regionais que traumatizaram tanto, marcaram tanto uma região ou um grupo, que sua memória pode ser transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação (1992, citado por POLLAK).
           Após a introdução, Michael Pollak explica que a memória é seletiva, pois nem tudo o que ocorre no contexto social e pessoal de um indivíduo é registrado, ou seja, como dito anteriormente a memória sofre articulações e flutuações, por isso ele afirma que esta é organizadíssima. Logo, completa dizendo que a memória organizada é a memória nacional, que constitui um objeto de disputa importante para determinar que datas e quê acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo. Sendo assim, a memória é, consequentemente, um fenômeno construído (POLLAK, 1992).
           Então, quando se trata de memória herdada, levando em consideração que é um processo social e individual, é possível entender que existe uma junção entre a memória e o sentimento de identidade, Pollak (1992) neste texto considera a identidade como o sentido da imagem de si, para si e para os outros.
“Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao logo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros. ” (POLLAK, 1992, p 5)

           A definição de identidade apresentada por Pollak (1992) põe em destaque a definição de ethos “modo de ser” ou “caráter” enquanto forma de vida também adquirida ou conquistada pelo homem (VÁSQUEZ, 1992). Ethos implica também uma maneira de se mover no espaço social e como essa maneira é percebida pelos outros (MAINGUENEAU, 2008). Segundo Michael Pollak (1992), a construção da identidade é formada por três etapas, física e/ou sentimental, moral e/ou psicológica e o sentimento de coerência.
           As três etapas se caracterizam pelas fronteiras físicas e/ou sentimentais, e pelos distintos princípios que formam um indivíduo e que estão de fato imbricados. Consequentemente, concebe-se memória como um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual quanto coletiva, assim como um aspecto importante do sentimento de continuidade e coerência de um indivíduo ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992).
           Desse modo, a formação dessa identidade traz consigo conflitos sociais e intergrupais, pois, para o autor, a memória e a identidade são valores disputados, já que a memória individual pode entrar em confronto com a memória dos outros, fazendo com que essa disputa ocorra também no âmbito familiar, como é o caso de muitas famílias relatadas na obra de Gerchunoff.
           Essas famílias entram em conflito quando algum parente se desvirtua de algum valor familiar herdado, acreditando que todos os judeus da colônia deveriam seguir, admirar e disseminar essa memória coletiva e individual herdada e compartilhada. Portanto, para Pollak, a elaboração desse tipo de memória exige um trabalho que leva tempo, pois envolve a valorização e a hierarquização de datas, hábitos, acontecimentos e personagens importantes.
           Quanto à obra Los Gauchos Judíos, relata o processo de integração dos judeus na Argentina, que inicialmente habitavam a região da atual cidade de La Plata. Os relatos enlaçam a cultura argentina com a judia. Os 26 relatos são autobiográficos, inspirados nas próprias lembranças de infância e adolescência do autor. Gerchunoff e sua família se estabeleceram na Argentina em 1889 quando ele tinha a idade de 5 anos.
           Desde muito pequeno, aprendeu sobre as perseguições antissemitas, escutou da boca de seu pai, um judeu de tradição rabínica, relatos sobre essa nova terra de promessas e de como seguiriam os mandamentos bíblicos trabalhando na terra e sendo agricultores, “Recordad las palavras del buen libro: Sólo los que viven de su ganado y de su siembra tienen alma pura y merecem la eternidad del Paraíso”.  (GERCHUNOFF, 1975, p.36).
Com o intuito de melhor entender os problemas de tradução, no percurso deste artigo tomamos como ponto de partida a concepção da etnografia como sendo uma explanação vertida de uma cultura viva, abstrata e particular (BENJAMIN, 2008). Essa preocupação em transpor um texto a outro idioma, invoca a tradução de toda uma cultura. Desta forma, apresentar uma breve justificativa do que significa traduzir é fundamental para este trabalho. Benjamin (2008) salienta, que traduzir refere-se sobretudo a uma forma e que para contemplá-la é necessário regressar à situação originária da “traduzibilidade” (citado por Gama, 2010, p.3).
 No que tange à noção de “traduzibilidade”, pode-se afirmar que procede do questionamento sobre “até que ponto a natureza de algo, especialmente uma obra humana, permite uma tradução ou até mesmo exige reclamá-la” (GAMA, 2010, p.3). Entende-se então, que “tradução condiz então com o tipo de procedimento que tanto ratifica a vitalidade como assegura a continuidade de uma obra” (GAMA, 2010, p.3) pois traduzir vai além da mera transposição mecânica de códigos linguísticos. Como este trabalho filia-se aos Estudos Comparados, dentro dessa área da crítica literária, a tradução deve ser entendida como “expressão das relações que se tecem entre intermediários (GAMA, 2010, p.3) e supõe estabelecer relações que os difere.
Para cada tradução descrição existem diversos procedimentos, a priori Ferreira (2014) destaca a definição, explicação, tradução literal e neologia e hiperonímia. São esses os tipos de descrição que “articulam conhecimentos como meios de escrever sobre o mundo” (FERREIRA, 2014, p.389). Então, as unidades de tradução serão destacadas e observadas com o objetivo de problematizar a realidade cultural dos relatos e permitir a percepção do que há particular no contexto em análise.
 Partindo dos procedimentos descrição fechada que “designa a produção de uma sequência em língua natural dos traços pertinentes de significação ou todos os traços conceituais pertinentes” (FERREIRA, 2014, p.389), é importante destacar que para a tradução descrição dos três relatos mencionados utilizaremos os seguintes tipos; descrição fechada/definição, uso de definições enciclopédicas; descrição antropolinguística/tradução literal; busca se manter mais próxima do “recorte do mundo produzido pela língua língua/cultura” (FERREIRA, 2014, p.390), possivelmente causará estranhamento, visto que se caracteriza como uma interlíngua e tradução-mestiçagem; e descrição causal/ explicação, remete a explicação da unidade destacada em português com o objetivo de esclarecer o “fator causal da origem” (FERREIRA, 2014, p.391) que o nome carrega.
Este trabalho teve como objetivo compreender os conceitos de memória e identidade presentes nos relatos da obra Los gauchos judíos de Alberto Gerchunoff, com o foco prático na tradução descrição de três relatos autobiográficos: Llegada de inmigrantes, Las lamentaciones e La trilla, nos quais estavam presentes os conceitos anteriormente destacados. Assim como, focar na contribuição da fortuna crítica da obra destacando dados como edições, traduções e importância para o cânone. Cabe destacar que que através da nossa análise pode-se contribuir para que outros estudantes tenham acesso aos três relatos traduzidos. Desde esta perspectiva eles poderiam, quem sabe, dar andamento a novas traduções, dado que a obra não possui tradução para a língua portuguesa. 
         Por meio da tradução descrição foi factível destacar palavras e frases que pertencem ao contexto particular da obra. Foi sob o cerne de Ferreira (2014) e Alves (2011) que encontramos uma melhor forma de que isso seja agora entendido em português. Portanto, como futura profissional do ensino de espanhol como língua estrangeira, considero a relevância do incentivo à formação cultural dos alunos, para que dessa forma conheçam novas obras literárias e saibam aproximá-las ao contexto em que estão imersos. 

Referências Bibliográficas

FEIERSTEIN, R. Alberto Gerchunoff: el argentino más judío, el judío más argentino.Buenos Aires: Capital Intelectual, 2013. 208 p.

FERREIRA, Alice Maria. O paradigma da descrição na tradução etnográfica: Levi-Strauss tradutor em Tristes Tropiques. Acta Scientiarum. Language and Culture, 2014, vol. 36, no 4, p. 383-393.

FRIEDLER, Egon. El CanónJudío. La lista de las 100 mayores obras de la moderna literatura judia. 2002. Disponível em: <http://letrasuruguay.espaciolatino.com/friedler/canon_judio_la_lista.htm>
Acesso em: dois de setembro de 2015

GAMA, Dirceu Ribeiro Nogueira. A etnografia enquanto tradução: diálogos entre Bronislaw Malinowski e Walter Benjamin. A Parte Rei: revista de filosofia, 2010, no 70, p. 11.

GERCHUNOFF, Alberto. Los GaúchosJudíos.Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires, 1964.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       

GERCHUNOFF, Alberto; SNEH, Perla. Los gauchos judíos: El hombre que habló en la Sorbona. Ediciones Colihue SRL, 2007.

IGEL, Regina.  Revista Iberoamericana: Escritores judeus brasileiros: um percurso em andamento. Vol. LXVI, Núm. 191. Abril-Junio, 2000.

MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008, p. 11-29.

SENKMAN, L. Los gaúchos judíos: una lectura desde israel. Estudios Interdisciplinares de América Latina y el Caribe, Vol10, N 1. 2015. Disponível em: <http://eial.tau.ac.il/index.php/eial/article/view/1045/1077#pagenote2>. Acesso em: 14 de dezembro de 2015

VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.


[1] Progromo (del ruso погром, pogrom: devastação). Termo utilizado para denotar atos de violência contra uma nação, em especial contra os judeus.

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