REDESCOBRINDO LOS GAUCHOS JUDÍOS SOB A PERSPECTIVA DA TRADUÇÃO DESCRIÇÃO
Raphaela Elias
XAVIER
Orientadora: Tarsilla Couto de BRITO
Este artigo possui dois objetivos. O segundo depende do primeiro.
Inicialmente, pretende-se ler a obra de Alberto Gerchunoff, Los gauchosjudíos, com base nos conceitos
de memória e identidade, apresentados por Michael Pollak (1992).
Posteriormente, será realizada a tradução comentada de alguns contos
selecionados a partir dos conceitos-chave acima mencionados. Como se vê, o
objetivo de natureza teórico-crítica está a serviço do objetivo de tradução. Primeiramente, projeta-se
apresentar o contexto geral da obra em análise e posteriormente, sua fortuna
crítica geral levantando dados como, edições e importância para o cânone.
Subsequentemente,
será feita uma resenha expandida dos relatos presentes em Los gauchos judios destacando as principais situações que enfatizam
o que há de memória e identidade. Seguidamente, propõe-se justificar e
conceituar a tradução descrição à luz dos conceitos de Levi-Strauss (1952),
Malinowiski (1978) e Walter Benjamin (2008) apresentados nos textos O paradigma
da descrição na tradução etnográfica: Levi-Strauss tradutor em Tristes Tropiques (GAMA, 2010) e A
etnografia enquanto tradução: diálogos entre Bronislaw Malinowiski e Walter
Benjamin (FERREIRA, 2014). Ao final do trabalho, planeja-se fazer uma tradução
descrição de três relatos autobiográficos, Llegada
de inmigrantes, Las lamentaciones e
La trilla, nos quais reverberam os conceitos de memória e identidade
mencionados anteriormente, visto que, a obra não possui tradução para o
português.
A
obra analisada está imersa no contexto histórico específico dos finais do
século XIX, época marcada por uma forte imigração dos judeus oriundos
principalmente da Rússia Czarista. Os judeus começaram a ser intensamente
segregados nas grandes cidades pelo governo Czarista de Alexandre III, sendo
proibidos de estudar, impedidos de possuir propriedades e também exilados e
mantidos em isolamento em pequenas aldeias disseminadas pela Europa Ocidental.
A
partir dessas circunstancias de constante perseguição, algumas associações
judaicas foram organizadas com o desígnio de amparar essa comunidade oprimida.
Uma delas era a ICA (Jwish Colonization Association), fundada em 1881 e
presidida pelo banqueiro Barão Maurice Hirsch Von Gereuth. Dessa maneira, com a
ajuda do Barão Hirsch fundaram-se as colônias agrícolas de MoísesVille na
província de Santa Fé e Domínguez na província de Entre Rios (Argentina). A
finalidade da criação dessas colônias era dar terras aos judeus para que
cultivassem, cuidassem e se estabelecessem no que a partir de então seria, para
eles, a nova Jerusalém.
Portanto,
o movimento migratório na Europa ocidental motivou vários judeus a construírem
uma nova vida na América. Como a obra em análise evidencia, os judeus começaram
a saber de informações sobre a “América”, chamada por eles de Novo Mundo, o que
enchia seus corações de fantasias, “A la Argentina iremos todos y volveremos a
trabajar la tierra, a cuidar nuestro ganado, que el Altísimo bendecirá”
(GERCHUNOFF, 1975, p.36). Vale ressaltar que essa visão ideológica da “América”
já existia em outras sociedades e países, eles não foram os precursores dessa
visão romantizada.
A obra de Alberto Gerchunoff, Los gaúchos judíos, foi publicada
inicialmente em 1910, em La Plata,
província de Buenos Aires, para homenagear o centenário da Revolução de Maio. A
partir desta primeira publicação, Gerchunoff ficou vinculado à importância
ideológica do centenário dos acontecimentos revolucionários que iniciaram o
processo do surgimento do Estado Argentino. Posteriormente, o livro foi
publicado em outros anos e por outras editoras, como a Editorial Sudamericana
em 1957, Editorial Milá Buenos Aires em 1988, Editorial Arenal (1990) e, por
último, Editorial Aguilar com 8 edições publicadas entre os anos de 1973 a
1975. É de suma importância destacar a
publicação da obra com a editora Aguilar, pois coincidiu como o aniversário de
25 anos da morte do autor e contribuiu também com a volta da obra, já que,
segundo o prólogo escrito por Martiniano Leguizamón, se encontrava escassa.
A Enciclopédia Judaica afirma que Los gaúchos judíos é a primeira obra
latino-americana que conta e descreve a história da imigração judaica ao que
eles consideravam ser o Novo Mundo, além de ser considerada a primeira de valor
literário escrita em espanhol por um judeu nos tempos modernos (FRIEDLER, 2002).
O livro também ocupa o lugar de número 35 na lista das 100 obras judaicas
modernas presentes no cânone judeu, estabelecido pelo National Yiddish Book
Center dos Estados Unidos.
É importante salientar, que a obra foi
traduzida para 4 idiomas, inglês, alemão, yidish e hebraico. A tradução feita
para o alemão foi publicada em 2010 pela editora Hentrich & Hentrich Verlag
Berlin para comemorar o Bicentenário da própria editora. O projeto foi
coordenado pelo consulado da República Argentina em FráncfortdelMeno e Katholische
Hochschulgemeinde com a participação de J.W. Goethe-Universitäte e apresentado
pela Dra. Liliana Feierstein.
Como
base para a discussão desta temática, serão utilizados os conceitos de memória
e identidade encontrados no texto de Michael Pollak, Memória e identidade
social (1992) para unir os acontecimentos que direcionam aos conceitos em
destaque presentes nos relatos da obra Los
Gauchos Judíos. Na introdução, Pollak inicia dizendo que tratará do
problema da ligação entre memória e identidade social, exemplificando ambos os
conceitos no âmbito das histórias de vida, chamadas de história oral, o que
rapidamente remete aos relatos vivenciados e escritos por Gerchunoff,
resenhados logo adiante.
Destaca-se depois, que a memória se
assemelha a um acontecimento individual, intimo, mas que logo, se
descobriu que é também um fenômeno coletivo e social, quer dizer, é um fenômeno
construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças
constantes (POLLAK, 1992). É importante entender a diferença entre memória
social e memória coletiva; a primeira remete aos acontecimentos vividos
pessoalmente e a outra aos acontecimentos chamados de “vividos por tabela”,
isto é, vividos no contexto social em que o indivíduo está inserido (POLLAK,
1992, p.5). Michael explica que é possível adquirir memórias sem ter estado
fisicamente inserido em um contexto x;
segundo ele, as memórias podem ser herdadas a ponto de nos sentirmos parte
delas.
Gerchunoff é um exemplo dessa memória
herdada, pois ele não esteve fisicamente presente em muitos dos ataques aos
judeus quando os progroms[1] se
iniciaram na Rússia, mas sua família sim, e desde pequeno contava que seu pai
relatava e sofria com esses acontecimentos (GERCHUNOFF, 1975). Portanto,
segundo Philippe Joutard, podem existir acontecimentos regionais que traumatizaram
tanto, marcaram tanto uma região ou um grupo, que sua memória pode ser
transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação (1992,
citado por POLLAK).
Após a introdução, Michael Pollak
explica que a memória é seletiva, pois nem tudo o que ocorre no contexto social
e pessoal de um indivíduo é registrado, ou seja, como dito anteriormente a
memória sofre articulações e flutuações, por isso ele afirma que esta é
organizadíssima. Logo, completa dizendo que a memória organizada é a memória
nacional, que constitui um objeto de disputa importante para determinar que
datas e quê acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo. Sendo assim,
a memória é, consequentemente, um fenômeno construído (POLLAK, 1992).
Então, quando se trata de memória
herdada, levando em consideração que é um processo social e individual, é
possível entender que existe uma junção entre a memória e o sentimento de
identidade, Pollak (1992) neste texto considera a identidade como o sentido da
imagem de si, para si e para os outros.
“Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao
logo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos
outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também
para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros. ” (POLLAK,
1992, p 5)
A definição de identidade apresentada
por Pollak (1992) põe em destaque a definição de ethos “modo de ser” ou “caráter” enquanto forma de vida também
adquirida ou conquistada pelo homem (VÁSQUEZ, 1992). Ethos implica também uma
maneira de se mover no espaço social e como essa maneira é percebida pelos
outros (MAINGUENEAU, 2008). Segundo
Michael Pollak (1992), a construção da identidade é formada por três etapas,
física e/ou sentimental, moral e/ou psicológica e o sentimento de coerência.
As três etapas se caracterizam pelas
fronteiras físicas e/ou sentimentais, e pelos distintos princípios que formam
um indivíduo e que estão de fato imbricados. Consequentemente, concebe-se
memória como um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto
individual quanto coletiva, assim como um aspecto importante do sentimento de
continuidade e coerência de um indivíduo ou de um grupo em sua reconstrução de
si (POLLAK, 1992).
Desse modo, a formação dessa
identidade traz consigo conflitos sociais e intergrupais, pois, para o autor, a
memória e a identidade são valores disputados, já que a memória individual pode
entrar em confronto com a memória dos outros, fazendo com que essa disputa
ocorra também no âmbito familiar, como é o caso de muitas famílias relatadas na
obra de Gerchunoff.
Essas famílias entram em conflito
quando algum parente se desvirtua de algum valor familiar herdado, acreditando
que todos os judeus da colônia deveriam seguir, admirar e disseminar essa
memória coletiva e individual herdada e compartilhada. Portanto, para Pollak, a
elaboração desse tipo de memória exige um trabalho que leva tempo, pois envolve
a valorização e a hierarquização de datas, hábitos, acontecimentos e
personagens importantes.
Quanto à obra Los Gauchos Judíos, relata o processo de integração dos judeus na
Argentina, que inicialmente habitavam a região da atual cidade de La Plata. Os
relatos enlaçam a cultura argentina com a judia. Os 26 relatos são
autobiográficos, inspirados nas próprias lembranças de infância e adolescência
do autor. Gerchunoff e sua família se estabeleceram na Argentina em 1889 quando
ele tinha a idade de 5 anos.
Desde muito pequeno, aprendeu sobre
as perseguições antissemitas, escutou da boca de seu pai, um judeu de tradição
rabínica, relatos sobre essa nova terra de promessas e de como seguiriam os
mandamentos bíblicos trabalhando na terra e sendo agricultores, “Recordad las
palavras del buen libro: Sólo los que viven de su ganado y de su siembra tienen
alma pura y merecem la eternidad del Paraíso”.
(GERCHUNOFF, 1975, p.36).
Com o intuito de melhor entender os
problemas de tradução, no percurso deste
artigo tomamos como ponto de partida a concepção da etnografia como sendo uma
explanação vertida de uma cultura viva, abstrata e particular (BENJAMIN, 2008).
Essa preocupação em transpor um texto a outro idioma, invoca a tradução de toda
uma cultura. Desta forma, apresentar uma breve
justificativa do que significa traduzir é fundamental para este trabalho.
Benjamin (2008) salienta, que traduzir refere-se sobretudo a uma forma e que
para contemplá-la é necessário regressar à situação originária da
“traduzibilidade” (citado por Gama, 2010, p.3).
No que tange à noção de “traduzibilidade”,
pode-se afirmar que procede do questionamento sobre “até que ponto a natureza
de algo, especialmente uma obra humana, permite uma tradução ou até mesmo exige
reclamá-la” (GAMA, 2010, p.3). Entende-se então, que “tradução condiz então com
o tipo de procedimento que tanto ratifica a vitalidade como assegura a
continuidade de uma obra” (GAMA, 2010, p.3) pois traduzir vai além da mera
transposição mecânica de códigos linguísticos. Como este trabalho
filia-se aos Estudos Comparados, dentro dessa área da crítica literária, a
tradução deve ser entendida como “expressão das relações que se tecem entre intermediários
(GAMA, 2010, p.3) e supõe estabelecer relações que os difere.
Para cada tradução descrição existem
diversos procedimentos, a priori Ferreira (2014) destaca a definição,
explicação, tradução literal e neologia e hiperonímia. São esses os tipos de descrição
que “articulam conhecimentos como meios de escrever sobre o mundo” (FERREIRA,
2014, p.389). Então, as unidades de tradução serão destacadas e observadas com
o objetivo de problematizar a realidade cultural dos relatos e permitir a
percepção do que há particular no contexto em análise.
Partindo dos procedimentos descrição fechada
que “designa a produção de uma sequência em língua natural dos traços
pertinentes de significação ou todos os traços conceituais pertinentes”
(FERREIRA, 2014, p.389), é importante destacar que para a tradução descrição
dos três relatos mencionados utilizaremos os seguintes tipos; descrição
fechada/definição, uso de definições enciclopédicas; descrição
antropolinguística/tradução literal; busca se manter mais próxima do “recorte
do mundo produzido pela língua língua/cultura” (FERREIRA, 2014, p.390),
possivelmente causará estranhamento, visto que se caracteriza como uma
interlíngua e tradução-mestiçagem; e descrição causal/ explicação, remete a
explicação da unidade destacada em português com o objetivo de esclarecer o
“fator causal da origem” (FERREIRA, 2014, p.391) que o nome carrega.
Este trabalho teve como objetivo
compreender os conceitos de memória e identidade presentes nos relatos da obra Los gauchos judíos de Alberto Gerchunoff, com o foco prático na tradução descrição de três relatos autobiográficos: Llegada de inmigrantes, Las lamentaciones e La trilla, nos quais estavam presentes
os conceitos anteriormente destacados. Assim como, focar na contribuição da
fortuna crítica da obra destacando dados como edições, traduções e importância
para o cânone. Cabe destacar que que através da nossa análise pode-se contribuir para que
outros estudantes tenham acesso aos três relatos traduzidos. Desde esta
perspectiva eles poderiam, quem sabe, dar andamento a novas traduções, dado que
a obra não possui tradução para a língua portuguesa.
Por meio da tradução descrição foi factível destacar palavras e frases que pertencem ao contexto particular da obra. Foi
sob o cerne de Ferreira (2014) e Alves (2011) que encontramos uma melhor forma
de que isso seja agora entendido em português. Portanto,
como futura profissional do ensino de espanhol como língua estrangeira,
considero a relevância do incentivo à formação cultural dos alunos, para que
dessa forma conheçam novas obras literárias e saibam aproximá-las ao contexto
em que estão imersos.
Referências Bibliográficas
FEIERSTEIN, R. Alberto Gerchunoff: el argentino más
judío, el judío más argentino.Buenos Aires: Capital Intelectual, 2013. 208 p.
FERREIRA, Alice Maria. O
paradigma da descrição na tradução etnográfica: Levi-Strauss tradutor em
Tristes Tropiques. Acta
Scientiarum. Language and Culture, 2014, vol. 36, no 4, p. 383-393.
FRIEDLER,
Egon. El CanónJudío. La lista de las 100 mayores obras de la moderna
literatura judia. 2002. Disponível em:
<http://letrasuruguay.espaciolatino.com/friedler/canon_judio_la_lista.htm>
Acesso
em: dois de setembro de 2015
GAMA, Dirceu Ribeiro
Nogueira. A etnografia enquanto tradução: diálogos entre Bronislaw Malinowski e
Walter Benjamin. A Parte Rei:
revista de filosofia, 2010, no 70, p. 11.
GERCHUNOFF, Alberto. Los GaúchosJudíos.Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos
Aires, 1964.
GERCHUNOFF, Alberto; SNEH, Perla. Los gauchos judíos: El
hombre que habló en la Sorbona. Ediciones Colihue SRL, 2007.
IGEL, Regina.
Revista Iberoamericana: Escritores
judeus brasileiros: um percurso em andamento. Vol. LXVI, Núm. 191. Abril-Junio,
2000.
MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. Ethos discursivo. São Paulo:
Contexto, 2008, p. 11-29.
SENKMAN, L. Los
gaúchos judíos: una lectura desde israel. Estudios Interdisciplinares de
América Latina y el Caribe, Vol10, N 1. 2015. Disponível em: <http://eial.tau.ac.il/index.php/eial/article/view/1045/1077#pagenote2>. Acesso em: 14 de dezembro de 2015
VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1992.
[1]
Progromo (del ruso погром,
pogrom: devastação). Termo utilizado para denotar atos de violência contra uma
nação, em especial contra os judeus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário