TRADUZINDO O CONTO “WE’RE NOT JEWS”, DE HANIF
KUREISHI: UMA PERSPECTIVA POÉTICA E MIGRANTE.
Marcondes Silva[1]
(POSTRAD – UnB)
Este
texto tem por objetivo explanar brevemente o processo de formação do projeto de tradução do conto “We’re
not Jews”, do escritor britânico Hanif Kureishi. Com essa meta, o autor e o
conto serão introduzidos, assim como uma perspectiva poética para a tradução e
a migração como um paradigma teórico para a leitura e a tradução do conto.
O autor do conto, Hanif Kureishi,
nasceu em Bromley, Londres, em 1954. Ele é o primeiro filho do casamento entre
Rufiushan Kureishi e Audrey Buss. Rufiushan nasceu na Índia, em uma família muçulmana
que se mudou para o Paquistão após sua formação. Audrey nasceu e cresceu na
mesma vizinhança que morou após casar, em Bromley. Kureishi é, assim, um filho
de um imigrante indiano/paquistanês e uma mulher inglesa.
Figura 1: Foto do autor em 2013.
A identidade múltipla toma papel
fundamental em seu trabalho. Apesar de não ser um tema abordado em toda a sua
produção, é um dos eixos fundamentais de sua produção. Está presente nos filmes
“My beautiful laundrette” (1985) e “My son, the fanatic”(1997),
nos romances “The Buddha of suburbia” (1991) e “My ear at his heart”
(2004) e em três dos contos da coletânea “Love in a blue time” (1997),
dentre os quais se encontra o conto “We’re not Jews”.
Figura 2:
Capa do livro "Love in a blue time"
Em
entrevista ao The Guardian (01/2014), Kureishi afirma:
(...) By the age of 14, I'm a Pakistani kid who likes
Jimi Hendrix, takes drugs and wants sex. How do you make a book out of this?
You have to invent a style and a world. It was a new kind of English realism.
(...) So what I had to do, was uncover who I really
was. You saw that a lot in the 70s: blacks, gays, women. It all came out
of EP
Thompson [The
Making of the English Working Class] and the idea that ordinary people
have their own history.
[(...)Aos
14, eu sou um garoto paquistanês que gosta de Jimi Hendrix, toma drogas e quer
sexo. Como você faz um livro disso? Você tem que inventar um estilo e um mundo.
Era um novo tipo de realismo inglês.
(...) Então, o que eu tive que fazer foi
revelar quem eu realmente era. Você via muita coisa nos anos 70: negros, gays,
mulheres. Tudo veio de EP Thompsom [A
formação da classe operária inglesa] e a ideia que pessoas comuns têm
sua própria história.]
O conto em questão relata o que
seria um momento comum no dia de Azhar e sua mãe: a ida da escola pra casa. Azhar é uma
criança, filho de pai paquistanês e mãe inglesa. Ele sofre Bullying na escola,
é xingado pelos colegas, em especial Little Billy, com expressões racistas e
sua mãe denuncia o caso à escola. Azhar e sua mãe encontram Little Billy e seu
pai no ônibus a caminho de casa, no qual são agredidos verbalmente pelo pai de
Little Billy.
No
conto, são intercalados os tempos verbais past
simple e past perfect. Há o
relato desse caminho e a interposição de memórias anteriores aos
acontecimentos. A sintaxe das agressões sofridas é constantemente pausada por
essas memórias que, à guisa de apostos, dão algum grau de complexidade aos
personagens e às suas vidas. Esse tempo-memória é reforçado pela pequena
quantidade de falas dos personagens, se comparada ao texto narrado.
Para
a tradução do conto, os aspectos acima mencionados são levados em conta, assim
como a análise e crítica da leitura do texto se fundamentam nos aspectos
poéticos da escrita de si e seu caráter heterogêneo da migração, e orientam o
processo de tradução. O conceito de
tradução foi extraído dos trabalhos de Antoine Berman, em A tradução e a letra ou O albergue do longínquo (2013), e Ezra
Pound, nos livros ABC da literatura (2013)
e Literary essays (1968). Ambos os
teóricos propõem uma teoria tradutória na qual a tradução é o estabelecimento
de encontro e relação com o outro. O primeiro, em A tradução e a letra ou O albergue do longínquo (2013), apresenta a
tradução como tradução da letra. Isto é, na tradução a estrutura do original é
aparente. O texto traduzido traz a luz o estrangeiro respeitando suas
peculiaridades e é, portanto, estranho na recepção. No segundo teórico, a
tradução tem dupla função: é uma tarefa de leitura e, portanto, um meio para
entender a literatura e um meio para renovar e expandir a literatura de um
país. É, assim, fundamental que a tradução traga em si os aspectos do original
que são inovadores em relação à língua e à literatura da recepção.
Nessa
tarefa de leitura e entendimento do caráter do texto migrante a ser traduzido, tomamos
o conceito de mestiçagem de Laplantine e Nouss quando dizem:
A
mestiçagem procede ao deslocamento que se tinha por categorial, mesmo
categórico, pondo em questão princípios, nomeadamente o princípio da
identidade. Para lá da garantia de uma filiação entendida como apropriação, ela
está empenhada nos riscos de alianças que farão surgir o inédito. (LAPLANTINE
& NOUSS, s/d: p.85)
Na
citação alguns elementos tomam destaque fundamental no entendimento da poética
mestiça. O categorial no conto em questão se relaciona diretamente com a
nacionalidade dos personagens. Há a categoria inglesa e a paquistanesa. Às duas
categorias são agregadas características físicas, como a cor da pele;
linguísticas e, principalmente culturais, como o modo que vivem e a culinária.
Em relação a essas categorias, são estabelecidas as identidades, que
presunçosamente se afirmam portadoras de nacionalidade, e os limites entre a
identidade nacional e a estrangeira, gerando pertencimentos e exclusões.
O mestiço coloca essas categorias em
risco. A mestiçagem se divide em dois processos distintos, mas que podem ser
complementares. O primeiro, ocorre na filiação e é previsível. O filho mestiço
carrega traços biológicos desse processo. O segundo processo é a aliança,
imprevisível. Na aliança[2],
á a tensão que estabelece contado entre duas categorias e que produz novas
categorias, ou identidades, eliminando o a possibilidade de uma identidade
homogênea e regular, mas a contínua produção de heterogeneidades. A formação do
mestiço interage com essas categorias agregando alguns aspectos e refutando
outros. Assim, sua identidade não gera pertencimento às categorias, mas a
transgressão das mesmas.
Como
melhor traduzir o conto? A resposta ainda parece difusa, mas as perspectivas
acerca da tradução dos dois teóricos apontados e o processo de mestiçagem são
fundamentais à formação de um projeto que respeite a singularidade do conto a
ser traduzido.
Bibliografia:
BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de:
Marie-Hélène C.
Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. Florianópolis: PGET/UFSC, 2013.
CASTRO, Viveiro
de, Eduardo. Metafísicas canibais.
São Paulo: Cosac Naify, 2015.
KUREISHI, Hanif. We’re not Jews. In: Love in
a blue time. Londres: Faber & Faber, 1997.
LAPLANTINE,
François & NOUSS, Alexis. A mestiçagem. Tradução de Ana Cristina
Leonardo. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.
POUND, Ezra. Literary
Essays of Ezra Pound. Nova Iorque: New Directions, 1968.
__________. ABC
da literatura. Tradução de José Paulo Paes e Augusto de Campos. São Paulo: Cultrix, 2013.
The Guardian. Hanif Kureishi interview: Every 10 years
you become someone else. Disponível em:<http://www.theguardian.com/books/2014/jan/19/hanif-kureishi-interview-last-word>.
Dezenove de janeiro de 2014. Último acesso em: 25/02/2016.
[1] Mestrando no Programa
de Pós-graduação em Estudos da Tradução na Universidade de Brasília, sob a
orientação de Alice Maria Araújo Ferreira. Estudante-pesquisador do grupo de
pesquisa Poéticas do devir.
[2] “Na ordem do
extensivo, a filiação se reveste de um caráter a posteriori,
“administrativo e hierárquico”, ao passo que a aliança, que nesta ordem é
primeira, é “política e econômica” .
Citações internas: (DELEUZE e
GUATTARI, 1972, apud CASTRO, 2015, p.143) Citação do trecho:(CASTRO, 2015. P.
143)
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