TRADUZIR BOLOS DO “DICIONÁRIO DE FOLCLORE BRASILEIRO” DE CÂMARA CASCUDO:
UMA ABORDAGEM ETNOTERMINOLÓGICA.
Maria Cândida
Figueiredo Moura[1]
(Postrad – UnB)
Definir
o conceito de cultura é certamente um desafio, diversos aspectos devem ser
avaliados ao afirmar se algo é cultura ou não, se existem múltiplas culturas ou
se esta é uma multiplicidade. Uma reflexão sobre esse assunto torna-se
fundamental para que possamos nos compreender e, também, o grupo no qual estamos
inseridos. Esse compreender-se passa por uma relação
com o outro. Dentre os diversos aspectos relacionados a esse conceito,
alguns são mais comumente lembrados, como a dança, a música, a literatura e a
culinária.
No
Brasil, Luís da Câmara Cascudo, um grande folclorista, retratou em sua obra
essas caracterizações culturais que nos permite definir uma cultura, a qual já
foi e é utilizada por diversos pesquisadores do tema. Nascido em Natal, Rio
Grande do Norte, além de se dedicar ao estudo do folclore brasileiro, foi também
historiador, antropólogo, jornalista e advogado, tendo, inclusive, lecionado
direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
As
obras mais relevantes de Câmara Cascudo, como é mais conhecido, em relação aos
estudos etnográficos e antropológicos são: Geografia
dos mitos brasileiros (1947), Rede de
dormir (1959), História da
alimentação no Brasil (1967), e claro, aquele que será nosso objeto de
estudo: O Dicionário do folclore
brasileiro (1954).
O
Dicionário do folclore brasileiro, trata-se
de um compilado de informações etno-históricas brasileiras, não se limitando a algumas
regiões, mas contemplando os quatro cantos do país. Câmara Cascudo conseguiu compilar
nesta obra, diversas entradas que elucidam mitos, danças, tradições e outras manifestações
folclóricas então desconhecidas de grande parte da população.
O
material está estruturado em forma de um dicionário, ou seja, com entradas organizadas
por ordem alfabética contendo informações/ definições/ descrições que compõem o
verbete. O que se destaca nesta obra em particular, é o fato de que suas
referências e bibliografias, diferentemente do habitual, aparecem no corpo do
verbete, o que torna a descrição mais apurada, bem como poupa o leitor de
frequentes remissões ao término do livro.
Capa do dicionário do folclore brasileiro,
12ª edição. Global Editora
Este
tipo de abordagem, chamada etnoterminográfica, se destaca, pois exige conhecimentos
diversos e apresenta informações históricas, etnográficas, antropológicas e
linguísticas dos termos. Segundo Barbosa (2006), para a construção de uma obra
etnoterminográfica “é preciso estar familiarizado com as histórias, conhecer o
pensamento e o sistema de valores da cultura em questão, para poder
compreendê-los bem. De fato, é outra linguagem, que é preciso aprender, para
interpretá-los corretamente.”
Vale
destacar que este processo, apesar de parecer simplório à primeira vista, de
fato não é, pois existe sempre a possibilidade de expressar opiniões pessoais,
desmerecendo, ou pelo contrário, supervalorizando, determinado povo ou
tradição.
Nosso trabalho propõe traduzir alguns artigos etnoterminológicos
para o inglês, francês e espanhol. Nossa problemática consiste em pensar um
processo de tradução que não apague a abordagem etno-histórica que orienta o
dicionário.
Esta
relação que ocorre na tradução entre o “eu” e o “outro” é muitas vezes
conflituosa, de modo que saber diferenciar o que é natural para o autor e o que
não é para os outros é uma indagação que deve fazer parte do ritual de busca de
um pensamento coletivo. Entender que na tradução etnográfica um dos objetivos é
descrever o “eu” para
apresenta-lo ao outro, passa, também por nos questionar sobre o que é ou
não natural e comum para nós.
Exemplo de verbete do dicionário.
Este
pensamento etnográfico orientará nosso projeto de tradução. Considerando o
amplo material informativo disposto no Dicionário
do folclore brasileiro, propomos uma seleção dos termos que serão
traduzidos a partir da metodologia de Corpus
e também de um critério temático.
O
trabalho passa, então, pela discussão de conceitos como os de: etnografia,
identidade e mestiçagem, através de leituras de autores como Viveiros de Castro,
Laplantine e Lévi-Strauss. A discussão nos permite pensar a elaboração de uma versão
das entradas selecionadas para o inglês, o francês e o espanhol.
Por
se tratar de uma obra extensa, optamos por realizar as traduções de entradas
relacionadas à culinária. Dentro desta área maior, foi feito um levantamento dos
termos relacionados a esse assunto e na compilação encontramos 196 termos. Em
meio a estes foram selecionadas 18 entradas para serem traduzidas, todas
referentes a bolos.
Tabela com os termos relacionados à culinária encontrados
no dicionário
Sabemos
que tratar destes conceitos de cultura e identidade costuma ser um tanto
desafiador, porém ao tratar de folclore torna-se quase impossível não dialogar
sobre o assunto. Para tal, buscaremos sempre não reduzir ou simplificar para
realizar as descrições, especialmente no momento das traduções onde boa parte
do empenho está em nos traduzir para o outro, para que desta maneira um não
falante do português possa compreender um pouco mais sobre nossa culinária que
é notoriamente diversificada e complexa.
Por
fim, vale destacar que quebrar a ideia do universalismo e buscar o
estranhamento é parte fundamental desta pesquisa. Faz parte do processo de
tradução tentar nos compreender para que assim possamos nos traduzir para este
outro que nos desconhece.
Referências
bibliográficas
BARBOSA, M. A., Para uma
etno-terminologia: recortes epistemológicos. In: Ciência e cultura. São
Paulo, v 58, nº 2, 2006.
CAMARA CASCUDO, L., Dicionário do
Folclore Brasileiro, São Paulo, Global Editora, 2012.
CASTRO, VIVEIROS DE, Metafísicas canibais, Cosac-Naify, São
Paulo, 2009.
CASTRO,
VIVEIROS DE, Xamanismo transversal:
Lévi-Strauss e a cosmopolítica amazônica. In: QUEIROZ, R. de C.; NOBRE, R.
F. (Org.). Lévi-Strauss:
leituras brasileiras. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008a. p. 79-124.
LAPLANTINE,
F., La description ethnographique. Paris: Armand
Colin, Coll. « 128 », 2005.
LEVI-STRAUSS, C., O cru e o cozido. (Mitológicas v.1) Título original: Le cru et le
cuit (Mythologiques I) Tradução: Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac-Naify,
2010.
SOUZA,
A. M. de. O uso do dicionário em sala de aula. In: III Jornada Nacional
de Linguística e Filologia da Língua Portuguesa. Rio Branco, 2009.
[1] Mestranda no
programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução do Departamento de Línguas
Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília, sob a orientação de Alice Maria de Araújo Ferreira.
Estudante-pesquisadora do Grupo Tradução Etnográfica e Poéticas do Devir.
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