domingo, 17 de abril de 2016

RESUMOS DAS COMUNICAÇÕES DO I ENCONTRO DE CRÍTICA E TRADUÇÃO DO EXÍLIO



PARA UMA CRÍTICA POÉTICA-ETNOGRÁFICA DA TRADUÇÃO PARA LIBRAS DO ESPETÁCULO TRADIÇÃO VIVA: CONTOS AFRICANOS

Virgílio Soares da Silva Neto[1] (POSTRAD – UnB)

A comunicação do I Encontro de Crítica e Tradução do Exílio teve como objetivo apresentar o meu projeto de mestrado. Nela discuti teoricamente as questões relacionadas a tradução realizada por mim do espetáculo teatral Tradição Viva – Contos Africanos que teve a sua primeira temporada na FUNART em Brasília nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2014 e a segunda temporada no SESC Newton Rossi na Cidade de Ceilândia –DF nos dias 25 e 26 de outubro de 2015.
O convite para realizar a tradução do musical para Língua Brasileira de Sinais (Libras) veio da própria autora. Há que se dizer que a inserção de tradutores de Libras em eventos e espetáculos culturais tem ocorrido devido ao incentivo dos editais do Fundo de Apoio Cultural - FAC. Nestes, um dos critérios de pontuação é a acessibilidade dos espetáculos que pode estar relacionada a escolha de teatros ou casas de espetáculos mais adaptados para deficientes físicos, guias para deficientes visuais, audiodescrição, programas impressos em braile e tradutores/intérpretes de Libras para comunidade surda, legendas e estenotipia para deficientes auditivos e etc. Esse incentivo (e imposição legal) viabilizaram o acesso de diversas pessoas com deficiências, incluindo os surdos a inúmeros espetáculos.
No entanto, embora tenha realizado um projeto de tradução para este trabalho, as escolhas iniciais se deram a partir de uma reflexão teórica bastante frágil, feeling e experimentações. Tornando as escolhas pouco consistentes ou inseguras em diversos momentos. Neste sentido, lançar mão das leituras sugeridas em disciplinas, na orientação da professora Alice Maria de Araújo Ferreira, bem como das discussões dentro do grupo de pesquisa Poéticas do devir, coordenado pela mesma professora tem contribuído para uma análise crítica do processo de tradução, e assim para um novo projeto ou retradução. Para repensar alguns aspectos ligados a arte teatral e a questões etnográficas presentes no espetáculo partimos de uma concepção de tradução como encontro e como poética. No entanto, não deixamos de considerar as escolhas que se mostraram bem-sucedidas.

Sobre o Espetáculo

O espetáculo Musical TRADIÇÃO VIVA – CONTOS AFRICANOS possui a seguinte ficha técnica:

Artista
Função
Personagem
Nãnam Matos
Autora, Atriz, Cantora e Diretora
Canto, Narração, Djeli
Abaeté Queiroz
Diretor
*********************
Francisco Thiago
Ator bonequeiro
Seu Neco, Obatalá, Ododuá
Fabiola Resende
Atriz bonequeira
Aroni, Olorum, Exú.
Diogo Cerrado
Músico e ator
Djeli Taú
Dani Neri
Musicista e atriz
Djeli Taú
Felipe Fiuza
Músico
***********************
André Costa
Músico
***********************
Louise Lucena
Dançarina
Ser humano, espíritos ancestrais e Iemanjá.
Raphael Portela
Dançarino
Ser humano, espíritos ancestrais e Xangô
Virgílio Soares
Tradutor Intérprete
Todas as vozes.

 O musical narra dois Itãs (mitos) tradicionais, um da cultura Malê e outro da Ioruba, através de música, contação de histórias com bonecos de manipulação direta e mamulengos, da dança e teatro com personagens encenados por atores. Ao todo, oito personagens compuseram as tramas e foram interpretados por cinco atores e dois dançarinos e o intérprete de libras cujo papel era, não apenas traduzir o texto das línguas orais, mas de facilitar a visualização de forma imagética, compondo desde o figurino ao posicionamento (ao centro do palco, ladeado com os personagens principais) e interagindo em alguns momentos com o elenco sem que para isso deixasse de cumprir a função de traduzir.
A peça está dividida em dois atos. No primeiro, Seu Neco com a ajuda de Taú (personagem atuado ao mesmo tempo por duas atrizes e um ator) explica a Aroni, uma jovem e ansiosa garota, temas espirituais, rezas, tradições e como se deu a criação do ser humano. Este mito adaptado para a peça é de origem do leste africano do Povo Malê. No segundo ato, os bonecos de articulação direta das duas personagens se retiram e dão passagem para o mamulengo e três fantoches que representam as personagens do segundo mito de tradição Ioruba.

Traduzir poéticas para Libras: do Tradutor ao Tradu-ator

As traduções de textos literários e teatrais de línguas orais para línguas de sinais costumeiramente têm o seu registro efetuado em vídeos, diferentemente do que ocorre nas traduções realizadas de uma língua oral para outra, cujo registro ocorre com frequência na forma de texto escrito. Hipotetizo que os motivos são: 1) a frágil incorporação e difusão das escritas de sinais (signwriting, SEL, entre outras); 2) que é a forma preferida da comunidade surda de captar um determinado texto. Nesse sentindo, o tradutor de textos literários e teatrais para libras deve além de buscar estratégias tradutórias dentro das questões linguísticas próprias de cada língua, uma sensibilidade poética e artística e assim agregar o fazer de um declamador e/ou um ator. Podemos dizer que o traduzir para Libras textos literários e teatrais aparentemente tem finalidades sobressalentes. Barros (2015) em sua dissertação cunhou o termo numa perspectiva concretista de “tradu-ator”. Segundo ela, o tradu-ator “ transpõe o poema performaticamente.” Para Barros “Os procedimentos de tradução envolvem questões associadas à captura e edição de vídeo além do estudo da iluminação, adereços e do corpo cênico." (2015, p. 125) 

Aspectos linguísticos e cênicos

            Dentre as questões linguísticas e poéticas envolvidas no processo de tradução, podemos destacar os aspectos seguintes:
1) O aspecto textual: Diz respeito a tradução do roteiro na qual foram observadas as línguas envolvidas (ioruba, português, malê e Libras) e as formas de enunciações de cada personagem. As análises textuais–enunciativas completam aspectos semântico-sintáticos, pragmático-discursivos, semióticos, poéticas bem como questões ligadas a polifonia e culturais das línguas fonte e alvo diz respeito a tradução do roteiro na qual foram observadas as línguas envolvidas (ioruba, português, malê e Libras) e as formas de enunciações de cada personagem. As análises textuais–enunciativas completam aspectos semântico-sintáticos, pragmático-discursivos, semióticos, poéticas bem como questões ligadas a polifonia e culturais das línguas fonte e alvo.
2) Aspectos Cênicos: posicionamento no palco (ou fora dele), postura, estratégias de cena, figurino (roupas e adereços), maquiagem, linguagens utilizadas nas cenas como: música, dança, vídeos, contação de história; iluminação, marcação dos personagens, a incorporação da representação de cada ator para os seus personagens, ruídos e etc.
O processo de tradução demanda também uma reflexão sobre as particularidades da Libras. Pois esta pertence ao grupo de línguas cuja modalidade é vísuoespacial (FAULSTICH, 2007, p. 83, 84). Nessas línguas os sujeitos e seus discursos são marcados espacialmente através de dêiticos como indicam Barbosa e Viotti (2013, pp. 21-25) em seu trabalho de Processo de referenciação na Libras: “Estudo de uma narrativa”. Barbosa e Viotti esclarecem que na Libras há uma diferenciação sintática-discursiva da utilização de dois processos denominados token e subrogados. O primeiro utiliza o espaço de sinalização apenas nas mãos, fazendo com que todos os elementos narrativos sejam fixados apenas nas mãos do sinalizador como em uma movimentação de fantoches. Já o segundo, traz o discurso para todo o corpo, inclusive lançando mão de elementos como pantomima, mímica e incorporando essas estratégias às narrativas do discurso.
Ana Regina Campelo, traz uma outra categoria linguística que pode ser encontrada e é ratificada na dissertação de Marcos Luchi (2013, p. 41 a 48). Campelo cunhou o termo Descrições Imagéticas para evidenciar expressões não lexicais das Libras. Segundo a autora, as descrições imagéticas são inerentes as línguas de sinais e ocorrem de forma icônica a partir das seguintes manifestações: 1 - Transferência de Tamanho e Forma; 2 - Transferência Espacial; 3 - Transferência de Localização; 4 – Transferência de Movimento e Transferência de Incorporação. Estes recursos ocorrem de maneira peculiar nas línguas de sinais trazendo mais complexidade e poderíamos dizer riqueza e espessura ao ato tradutório.

Exemplificando algumas questões

Para discutir algumas questões ligadas a aspectos textuais e cênicos apresentamos decisões tradutórias tomadas no espetáculo Tradição Viva – Contos africanos como a da tradução de canções e da diversidade linguística. 
O exemplo que escolhemos para a nossa discussão foi a canção introdutória do espetáculo destinada à Iemanjá. Sua letra em ioruba diz:
“Quiníjé, quiníjé ôlôdô? Iémanjaô,
Qui a sóró puéléé. Iáôdôdô, iádôdô”.

Cuja tradução para língua portuguesa é bastante difundida apesar do/a tradutor/a ser desconhecido/a:

Quem é, quem é a dona dos rios? É Iemanjá.
A quem nos dirigimos expressando simpatia. Mãe dos rios, Mãe dos rios”.

Para o primeiro momento deste trecho, eu utilizei a datilologia (escrita das línguas orais com o alfabeto manual) em forma de ondas, para que os falantes da língua de chegada percebessem de forma imagética o movimento das águas além de marcar a presença ioruba. Em um segundo momento eu fiz a tradução em libras, utilizando o sinal criado por Santana (2015 ) para a Orixá Iemanjá e traduzi efetuando movimentos que se assemelhassem visualmente as águas. A escolha de traduzir duas vezes, datilologia e para libras foi no intuito de aproximar o espectador de línguas e culturas distintas visando proporcionar, nos dizeres de Laplantine “deslocamento, ou seja, o espanto provocado pelas culturas mais distantes de nós, cujo encontro vai acarretar uma modificação do olhar que dirigimos para nós mesmos” (2004, p.13), mesmo que de forma inicial da tradição do povo Yorubá.

Para concluir o que apenas começa

Pensar nas questões poética e etnográficas (relação com a alteridade) tem contribuído com o meu processo acadêmico e profissional e aumentado gradativa e significativamente a complexidade do meu olhar no que diz respeito aos projetos de tradução que planejo e os que revejo. Pretendo continuar problematizando essas e outras questões, a fim de contribuir não só com o processo tradutório das línguas de sinais, como no ensino de tradução, bem como de pensar em uma acessibilidade à uma sensibilidade e a uma emoção artística.

Referências

BARBOSA, Thaís Bolgueroni, and Evani de Carvalho VIOTTI. "Processo de referenciação na Libras: estudo de uma narrativa." ENAPOLL. 14ª edição do ENAPOL (Encontro dos Alunos de Pós-Graduação em Linguística). São Paulo: USP 14: 15.

BARROS, Thatiane do Prado. Experiência de tradução poética de português/libras: três poemas de Drummond. Diss. Universidade de Brasília, 2015.

FAULSTICH, Enilde  http://www.centrolexterm.com.br/#!notas-lexicais/c22tu em 13 de novembro de 2015 as 18:16.

FAULSTICH, E. Modalidade oral-auditiva versus modalidade visoespacial sob a perspectiva de dicionários na área da surdez. In: LIMA-SALLES, Heloisa Maria Moreira (org). Bilinguismo dos surdos: questões linguísticas e educacionais. Goiânia: Cânone, 2007

LAPLANTINE, François e NOUSS, Alexis. A Mestiçagem. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.

LAPLANTINE, François. A descrição etnográfica. Terceira Imagem, 2004.

LUCHI, Marcos. Interpretação de descrições imagéticas: onde está o léxico?. Diss. Universidade Federal de Santa Catarina, 2013.

 

SANTANA, Neemias. Glossario Orixás - LIBRAS https://www.youtube.com/watch?v=LC2bq0rIxnc em 04 de novembro de 2015 às 17:00.


SKLIAR, Carlos. A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Medição, 1998.


[1] Mestrando no Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília, sob a orientação de Alice Maria de Araújo Ferreira. Estudante-pesquisador do Grupo Tradução Etnográfica e Poéticas do Devir.

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