PARA
UMA CRÍTICA POÉTICA-ETNOGRÁFICA DA TRADUÇÃO PARA LIBRAS DO ESPETÁCULO TRADIÇÃO
VIVA: CONTOS AFRICANOS
Virgílio Soares da Silva Neto[1]
(POSTRAD – UnB)
A
comunicação do I Encontro de Crítica e Tradução do Exílio teve como objetivo
apresentar o meu projeto de mestrado. Nela discuti teoricamente as questões
relacionadas a tradução realizada por mim do espetáculo teatral Tradição Viva – Contos Africanos que
teve a sua primeira temporada na FUNART em Brasília nos dias 20, 21 e 22 de
novembro de 2014 e a segunda temporada no SESC Newton Rossi na Cidade de
Ceilândia –DF nos dias 25 e 26 de outubro de 2015.
O
convite para realizar a tradução do musical para Língua Brasileira de Sinais
(Libras) veio da própria autora. Há que se dizer que a inserção de tradutores
de Libras em eventos e espetáculos culturais tem ocorrido devido ao incentivo
dos editais do Fundo de Apoio Cultural - FAC. Nestes, um dos critérios de
pontuação é a acessibilidade dos espetáculos que pode estar relacionada a
escolha de teatros ou casas de espetáculos mais adaptados para deficientes
físicos, guias para deficientes visuais, audiodescrição, programas impressos em
braile e tradutores/intérpretes de Libras para comunidade surda, legendas e
estenotipia para deficientes auditivos e etc. Esse incentivo (e imposição
legal) viabilizaram o acesso de diversas pessoas com deficiências, incluindo os
surdos a inúmeros espetáculos.
No
entanto, embora tenha realizado um projeto de tradução para este trabalho, as escolhas
iniciais se deram a partir de uma reflexão teórica bastante frágil, feeling e experimentações. Tornando as
escolhas pouco consistentes ou inseguras em diversos momentos. Neste sentido, lançar
mão das leituras sugeridas em disciplinas, na orientação da professora Alice
Maria de Araújo Ferreira, bem como das discussões dentro do grupo de pesquisa
Poéticas do devir, coordenado pela mesma professora tem contribuído para uma
análise crítica do processo de tradução, e assim para um novo projeto ou
retradução. Para repensar alguns aspectos ligados a arte teatral e a questões
etnográficas presentes no espetáculo partimos de uma concepção de tradução como
encontro e como poética. No entanto, não deixamos de considerar as escolhas que
se mostraram bem-sucedidas.
Sobre
o Espetáculo
O
espetáculo Musical TRADIÇÃO VIVA – CONTOS AFRICANOS possui a seguinte ficha técnica:
Artista
|
Função
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Personagem
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Nãnam Matos
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Autora, Atriz, Cantora e Diretora
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Canto, Narração, Djeli
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Abaeté Queiroz
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Diretor
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*********************
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Francisco Thiago
|
Ator bonequeiro
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Seu Neco, Obatalá, Ododuá
|
Fabiola Resende
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Atriz bonequeira
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Aroni, Olorum, Exú.
|
Diogo Cerrado
|
Músico e ator
|
Djeli Taú
|
Dani Neri
|
Musicista e atriz
|
Djeli Taú
|
Felipe Fiuza
|
Músico
|
***********************
|
André Costa
|
Músico
|
***********************
|
Louise Lucena
|
Dançarina
|
Ser humano, espíritos ancestrais e
Iemanjá.
|
Raphael Portela
|
Dançarino
|
Ser humano, espíritos ancestrais e
Xangô
|
Virgílio Soares
|
Tradutor Intérprete
|
Todas as vozes.
|
O musical narra dois Itãs (mitos) tradicionais,
um da cultura Malê e outro da Ioruba, através de música, contação de histórias
com bonecos de manipulação direta e mamulengos, da dança e teatro com
personagens encenados por atores. Ao todo, oito personagens compuseram as
tramas e foram interpretados por cinco atores e dois dançarinos e o intérprete
de libras cujo papel era, não apenas traduzir o texto das línguas orais, mas de
facilitar a visualização de forma imagética, compondo desde o figurino ao
posicionamento (ao centro do palco, ladeado com os personagens principais) e
interagindo em alguns momentos com o elenco sem que para isso deixasse de
cumprir a função de traduzir.
A
peça está dividida em dois atos. No primeiro, Seu Neco com a ajuda de Taú
(personagem atuado ao mesmo tempo por duas atrizes e um ator) explica a Aroni,
uma jovem e ansiosa garota, temas espirituais, rezas, tradições e como se deu a
criação do ser humano. Este mito adaptado para a peça é de origem do leste africano
do Povo Malê. No segundo ato, os bonecos de articulação direta das duas
personagens se retiram e dão passagem para o mamulengo e três fantoches que
representam as personagens do segundo mito de tradição Ioruba.
Traduzir
poéticas para Libras: do Tradutor ao Tradu-ator
As
traduções de textos literários e teatrais de línguas orais para línguas de
sinais costumeiramente têm o seu registro efetuado em vídeos, diferentemente do
que ocorre nas traduções realizadas de uma língua oral para outra, cujo
registro ocorre com frequência na forma de texto escrito. Hipotetizo que os
motivos são: 1) a frágil incorporação e difusão das escritas de sinais (signwriting, SEL, entre outras); 2) que
é a forma preferida da comunidade surda de captar um determinado texto. Nesse
sentindo, o tradutor de textos literários e teatrais para libras deve além de buscar
estratégias tradutórias dentro das questões linguísticas próprias de cada
língua, uma sensibilidade poética e artística e assim agregar o fazer de um
declamador e/ou um ator. Podemos dizer que o traduzir para Libras textos literários
e teatrais aparentemente tem finalidades sobressalentes. Barros (2015) em sua
dissertação cunhou o termo numa perspectiva concretista de “tradu-ator”. Segundo
ela, o tradu-ator “ transpõe o poema performaticamente.” Para Barros “Os procedimentos de
tradução envolvem questões associadas à captura e edição de vídeo além do
estudo da iluminação, adereços e do corpo cênico." (2015, p. 125)
Aspectos
linguísticos e cênicos
Dentre as questões linguísticas e poéticas envolvidas no
processo de tradução, podemos destacar os aspectos seguintes:
1) O aspecto textual: Diz respeito a tradução do
roteiro na qual foram observadas as línguas envolvidas (ioruba, português, malê
e Libras) e as formas de enunciações de cada personagem. As análises
textuais–enunciativas completam aspectos semântico-sintáticos,
pragmático-discursivos, semióticos, poéticas bem como questões ligadas a
polifonia e culturais das línguas fonte e alvo diz respeito a tradução do
roteiro na qual foram observadas as línguas envolvidas (ioruba, português, malê
e Libras) e as formas de enunciações de cada personagem. As análises
textuais–enunciativas completam aspectos semântico-sintáticos,
pragmático-discursivos, semióticos, poéticas bem como questões ligadas a
polifonia e culturais das línguas fonte e alvo.
2)
Aspectos Cênicos: posicionamento no palco (ou fora dele), postura, estratégias
de cena, figurino (roupas e adereços), maquiagem, linguagens utilizadas nas
cenas como: música, dança, vídeos, contação de história; iluminação, marcação
dos personagens, a incorporação da representação de cada ator para os seus
personagens, ruídos e etc.
O
processo de tradução demanda também uma reflexão sobre as particularidades da
Libras. Pois esta pertence ao grupo de línguas cuja modalidade é vísuoespacial
(FAULSTICH, 2007, p. 83, 84). Nessas línguas os sujeitos e seus discursos são
marcados espacialmente através de dêiticos como indicam Barbosa e Viotti (2013,
pp. 21-25) em seu trabalho de Processo de referenciação na Libras: “Estudo de
uma narrativa”. Barbosa e Viotti esclarecem que na Libras há uma diferenciação
sintática-discursiva da utilização de dois processos denominados token e subrogados.
O primeiro utiliza o espaço de sinalização apenas nas mãos, fazendo com que
todos os elementos narrativos sejam fixados apenas nas mãos do sinalizador como
em uma movimentação de fantoches. Já o segundo, traz o discurso para todo o
corpo, inclusive lançando mão de elementos como pantomima, mímica e
incorporando essas estratégias às narrativas do discurso.
Ana
Regina Campelo, traz uma outra categoria linguística que pode ser encontrada e
é ratificada na dissertação de Marcos Luchi (2013, p. 41 a 48). Campelo cunhou
o termo Descrições Imagéticas para evidenciar
expressões não lexicais das Libras. Segundo a autora, as descrições imagéticas são
inerentes as línguas de sinais e ocorrem de forma icônica a partir das
seguintes manifestações: 1 - Transferência de Tamanho e Forma; 2 -
Transferência Espacial; 3 - Transferência de Localização; 4 – Transferência de
Movimento e Transferência de Incorporação. Estes recursos ocorrem de maneira
peculiar nas línguas de sinais trazendo mais complexidade e poderíamos dizer
riqueza e espessura ao ato tradutório.
Exemplificando
algumas questões
Para discutir algumas questões
ligadas a aspectos textuais e cênicos apresentamos decisões tradutórias tomadas
no espetáculo Tradição Viva – Contos africanos como a da tradução de canções e
da diversidade linguística.
O
exemplo que escolhemos para a nossa discussão foi a canção introdutória do
espetáculo destinada à Iemanjá. Sua letra em ioruba diz:
“Quiníjé,
quiníjé ôlôdô? Iémanjaô,
Qui
a sóró puéléé. Iáôdôdô, iádôdô”.
Cuja tradução para
língua portuguesa é bastante difundida apesar do/a tradutor/a ser
desconhecido/a:
“Quem é, quem é a dona dos rios? É Iemanjá.
A
quem nos dirigimos expressando simpatia. Mãe dos rios, Mãe dos rios”.
Para o primeiro momento
deste trecho, eu utilizei a datilologia (escrita das línguas orais com o
alfabeto manual) em forma de ondas, para que os falantes da língua de chegada
percebessem de forma imagética o movimento das águas além de marcar a presença
ioruba. Em um segundo momento eu fiz a tradução em libras, utilizando o sinal
criado por Santana (2015
) para a Orixá Iemanjá e traduzi efetuando movimentos que se assemelhassem
visualmente as águas. A escolha de traduzir duas vezes, datilologia e para
libras foi no intuito de aproximar o espectador de línguas e culturas distintas
visando proporcionar, nos dizeres de Laplantine “deslocamento, ou seja, o
espanto provocado pelas culturas mais distantes de nós, cujo encontro vai
acarretar uma modificação do olhar que dirigimos para nós mesmos” (2004, p.13),
mesmo que de forma inicial da tradição do povo Yorubá.
Para
concluir o que apenas começa
Pensar
nas questões poética e etnográficas (relação com a alteridade) tem contribuído
com o meu processo acadêmico e profissional e aumentado gradativa e
significativamente a complexidade do meu olhar no que diz respeito aos projetos
de tradução que planejo e os que revejo. Pretendo continuar problematizando
essas e outras questões, a fim de contribuir não só com o processo tradutório das
línguas de sinais, como no ensino de tradução, bem como de pensar em uma
acessibilidade à uma sensibilidade e a uma emoção artística.
Referências
BARBOSA,
Thaís Bolgueroni, and Evani de Carvalho VIOTTI. "Processo de referenciação na Libras: estudo de uma
narrativa." ENAPOLL.
14ª edição do ENAPOL (Encontro dos Alunos de Pós-Graduação em Linguística). São Paulo: USP 14: 15.
BARROS,
Thatiane do Prado. Experiência de
tradução poética de português/libras: três poemas de Drummond. Diss.
Universidade de Brasília, 2015.
FAULSTICH, Enilde http://www.centrolexterm.com.br/#!notas-lexicais/c22tu em 13 de
novembro de 2015 as 18:16.
FAULSTICH, E. Modalidade oral-auditiva versus modalidade visoespacial sob a
perspectiva de dicionários na área da surdez. In: LIMA-SALLES, Heloisa
Maria Moreira (org). Bilinguismo dos surdos: questões linguísticas e
educacionais. Goiânia: Cânone, 2007
LAPLANTINE, François e NOUSS, Alexis. A Mestiçagem. Lisboa: Instituto Piaget,
2001.
LAPLANTINE,
François. A descrição
etnográfica. Terceira Imagem, 2004.
LUCHI,
Marcos. Interpretação de descrições
imagéticas: onde está o léxico?. Diss. Universidade Federal de Santa
Catarina, 2013.
SANTANA, Neemias. Glossario Orixás - LIBRAS https://www.youtube.com/watch?v=LC2bq0rIxnc em 04 de novembro de 2015 às 17:00.
SKLIAR, Carlos. A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Medição,
1998.
[1] Mestrando no Programa de
Pós-graduação em Estudos da Tradução do Departamento de Línguas Estrangeiras e
Tradução da Universidade de Brasília, sob a orientação de Alice Maria de Araújo Ferreira.
Estudante-pesquisador do Grupo Tradução Etnográfica e Poéticas do Devir.
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