PARA UMA CRÍTICA E TRADUÇÃO QUE CONSIDEREM AS POÉTICAS
DO DEVIR:
TRADUZINDO CONTOS DE EDWIDGE DANTICAT
Tathiana
Gonzaga de Lacerda Abreu[1]
(PIBIC – UnB)
Edwidge Danticat é uma escritora Haitiana
nascida em Port-au-Prince que, aos 12 anos, imigra para o Brooklyn (Nova York).
A partir de então, Danticat utiliza-se da escrita literária como refúgio do
deslocamento que sentia. Teve sua primeira publicação em inglês aos 14 anos,
intitulada "A Haitian-American Christmas: Cremace and Creole Theatre”
[Um Natal Haitiano-Americano: Cremace e Teatro Crioulo], e aos 25 anos publicou
seu primeiro livro “Breath, Eyes, Memory” [Respiração, Olhos, Memória].
Por ter, em grande parte de suas publicações,
a temática do Haiti como um dos pontos focais, Danticat chegou a ser rotulada
pela crítica norte-americana como “a voz literária do Haiti”. Porém, a autora
acredita que ser tida como a voz do Haiti silencia a multiplicidade de vozes e
trajetórias haitianas e generaliza a sua escrita, que, na verdade, reflete a
singularidade de suas preocupações tanto enquanto haitiana, mas também como
imigrante e estadunidense, já que a autora tem os EUA como seu local de
residência desde os 12 anos de idade. É possível também perceber nessa ênfase
que a crítica dá em sua origem haitiana, um intuito de separar Danticat dos
autores cânones norte-americanos e exotiza-la, colocando-a em um local mais bem
estabelecido, distanciado e confortável. A autora desafia essas críticas e
mostra em sua escrita toda a complexidade do local “entre” no qual ela se
encontra.
Edwidge
Danticat
Os contos escolhidos
para serem traduzidos são “Night Women” [Mulheres da Noite], que conta a
história de uma prostituta que divide o quarto com seu filho ao mesmo tempo que
tenta proteger sua inocência, e “New York Day Women” [Mulheres do Dia de Nova
York], que acompanha uma mulher que segue sua mãe pelas ruas de Nova York e
reflete sobre como o comportamento dela, que normalmente é o de uma senhora
haitiana tradicional, se modifica quando ela não está na presença da filha.
Ambos os contos fazem parte da coletânea intitulada Krik?Krak! (1994).
A abordagem escolhida
procura contemplar a poética de Edwidge Danticat, considerando sua escrita como
uma expressão singular (inserida em um contexto, mas não definida
exclusivamente por ele), enquanto a metodologia do trabalho situa-se na
estreita relação entre teoria/prática em que os problemas práticos desdobram-se
em questões teóricas. Nesse sentido, o fazer tradutório é chave para um pensar
sobre que desafie as categorias já existentes e enxergue além do rótulo
Pós-Colonial para um lugar que considere também as preocupações de autores
contemporâneos de migração, como é o caso da Haitiana. É desejável que uma nova
visão crítica considere também que esses lugares não são estáticos, e que,
portanto, traga em si a ideia de movimento, de dinâmica, de devir.
Em uma escrita como a
de Danticat, onde as marcas no discurso não são tão evidentes, é necessário
esforçar-se, primeiramente para percebe-las e, então, para traduzi-las. As
evocações ao Haiti acontecem de forma integrada a história e residem em
detalhes sutis. É o que acontece no conto “Night Women”, onde a personagem
narradora sempre menciona a cidade de Ville Rose (cidade haitiana fictícia, que
ficaria perto de Port-au-Prince), a cidade também é mencionada no conto “New
York Day Women” [Mulheres do Dia de Nova York] como a cidade onde a família da
história residia antes de imigrar para os Estados Unidos. Ainda em um esforço
de perceber marcas específicas em seu discurso para poder então preserva-las ao
máximo na tradução, também é possível perceber a repetição de alguns campos
lexicais semelhantes: palavras como ghost,
spirit, heaven, angel e soul [fantasma,
espirito, paraíso, anjo e alma] são presentes em “Night Women”, indicando um
vínculo espiritual que perdura no conto. Também é possível perceber que a
personagem, que é prostituta, refere-se aos seus clientes como suitors (que pode ser traduzido como pretendentes) talvez em uma tentativa de
romantização de sua profissão, usando essas formas mais suaves como fuga da
realidade em função de preservar a inocência de seu filho, e, em certa medida,
dela própria.
(Tradução apresentada dia 28/01 em Goiânia-GO).
Também
foi possível perceber em vários momentos separações rítmicas e grafias não
usuais ao longo do texto, como, por exemplo, palavras separadas no meio por
hífen. Essas palavras separadas por hífen aparecem em ambos os contos e nas
falas de diferentes personagens. Em “Night Women” fica clara a dupla conotação
que ocorre ao separar a palavra Sun-day,
já que, no inglês, essa separação gera duas palavras com sentido próprio. Porém
na tradução, a mesma separação não transpõe esse duplo sentido imediato, o que
representa uma questão a ser resolvida. Em outros momentos onde a separação
acontece a dupla conotação é menos clara, como em mo-ther ou occasion-ally,
sendo possível também se tratar de uma separação rítmica que emule uma
pronúncia oral mais pausada dessas palavras. De qualquer forma, a intenção aqui
é manter essas separações na tradução com o intuito de instigar a mesma
curiosidade e percepção de estranheza que foram obtidas no original.
(Tradução apresentada dia 28/01 em Goiânia-GO)
Procura-se subverter os
paradigmas estabelecidos pelos discursos teóricos da tradução apoiados em um
pensamento dicotômico (partida/chegada; conteúdo/expressão; original/tradução;
letra/espírito; identidade/alteridade; e etc.) para enxergar a tradução como
encontro (entre-lugares) e não como passagem ou transporte. Nesse sentido é
pertinente lembrar que a prática tradutória sempre foi contemporânea do
desenvolvimento social e geopolítico (Meschonnic, 2010), o que nos motiva a
pensar seu fazer no atual período histórico (pós-independências, de migração,
globalizado) frente a discursos literários e teóricos descentrados (Said, 2007).
Com relação a Danticat também nos ajuda a noção de escrita paratópica
(Maingueneau, 2006) caracterizando uma escrita que, ao mesmo tempo que a
distancia daqueles que tiveram a experiência do Pós-Guerra, a aproxima de novos
dilemas e incertezas sobre pertencimento e identidade.
Por último, essas
questões podem ser discutidas, inclusive no âmbito da tradução, a partir da
noção de mestiçagem (Laplantine, 2002). Sendo possível então perceber que a
tentativa de tornar o que se traduz unívoco e fluido, não marcado e
equivalente, parte da mesma tentativa uniformizadora que procura apagar (ou
minimizar o máximo possível) a alteridade. A partir dessa realização percebemos
que, dentro de uma abordagem prática que, ao invés de encarar as problemáticas
dos encontros linguísticos como oportunidades criativas de produzir algo a
partir da tensão, ignora essas problemáticas encaixando essa atividade em uma
estrutura rígida, a tradução está fadada à não criatividade e à negação de seu
próprio ato.
(I Encontro de Tradução e
Crítica do Exílio).
Bibliografia
DANTICAT,
Edwidge, Krik? Krak ?.
Nova York, Soho Press, 1994.
SAID, Edward, Orientalismo. Tradução de Rosaura Eichenberg, São Paulo, Companhia de Bolso, 2007.
SAID, Edward, Cultura e Imperialismo. Tradução de Denise
Bottmann, São Paulo, Companhia de Bolso, 2011.
MESCHONNIC, Henri, Poética do Traduzir. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich, São Paulo, Perspectiva, 2010.
LAPLANTINE, François. NOUSS, Alexis. A Mestiçagem. Tradução de Ana Cristina
Leonardo, Lisboa, Instituto Piaget, 2002.
MAINGUENEAU, Dominique, Discurso Literário. Tradução de A.
Sobral, São Paulo, Contexto, 2006.
[1] Graduanda de
Letras – Tradução/inglês no Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da
Universidade de Brasília. Bolsista iniciação científica sob a orientação de
Alice Maria de Araújo Ferreira. Estudante-pesquisadora
do grupo de Pesquisa Poéticas do Devir.
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