domingo, 17 de abril de 2016

RESUMOS DAS COMUNICAÇÕES DO I ENCONTRO DE CRÍTICA E TRADUÇÃO DO EXÍLIO



PENSAR A TRADUÇÃO COMO CRÍTICA DO EXÍLIO E POÉTICA DO DEVIR

Alice Maria de Araújo Ferreira (UnB-LET-PosTrad)

Traduzir é instalar-se no espaço do equívoco e habitá-lo.
Viveiro de Castro, Metáfisicas Canibais (2009, p. 90).

O título é um pouco pretensioso, mas sobretudo ousado, até porque pensar do/no exílio é ter um pensamento ousado, como é ousado questionar, interrogar, re-pensar. Nossa discussão não se baseia em uma teoria, enquanto discurso pre-estabelecido, mas numa interrogação e numa ruptura. São três pontos (de vista) que não se opõem, por isso não caracterizam três partes, mas se implicam e se tensionam:
1. Pensar a tradução como crítica do exílio é concebê-la não mais como passagem ou ponte, porque essas metáforas supõem que há algo independente da forma (poética) a ser levado do outro lado, e que os dois lados são sistemas fechados.
2. O traduzir nos põe frente a uma alteridade/anterioridade (linguística, histórica, geográfica, subjetiva, cultural) ao mesmo tempo que nos põe frente a nos-mesmo. O encontro provocado pelo traduzir cria uma tensão, logo movimento onde tudo é instável e imprevisível, um devir, nos termos de Deleuze e Guatarri.
3. As concepções do traduzir são contemporâneas das questões sobre a linguagem e das relações geopolíticas. Essa discussão nos leva a pensar sobre a renúncia e seu consentimento na tradução da diferença.

Pensar o processo de tradução a partir de uma crítica do exílio nos leva a pensar a tradução não mais como passagem entre dois sistemas fechados, mas enquanto encontro que provoca descentramento e estranhamento em que transformando o outro me transformo. Antropofagicamente, poderia dizer que ao devorar o texto-poética que traduzo, sou, ao mesmo tempo, devorado por ele.
Ao trazer a cultura para dentro do sistema linguística, a antropolinguística estruturalista (Sapir/Whorf) aponta para sistemas de valores fechados e, assim, para a dita intraduzibilidade. Pois cada cultura vendo o mundo a partir de sua própria língua seria incapaz de dizê-lo de outro modo, com outras cores, com outros ritmos. Essa perspectiva nega o aspecto histórico das línguas e culturas que mudam entrando em contato umas com as outras (para uma concepção essencialista e de pureza esse contato pode ser visto como nefasto e/ou degenerativo). Nessa perspectiva, a tradução opera a passagem de um sentido de um sistema de valores para outro, apagando as diferenças, trazendo para o mesmo, para o espelho, naturalizando. Berman (1984, 2007) chama essa tradução de etnocêntrica, Meschonnic (1999) fala em anexação, Venuti (2002) em domesticação, nos, em tradução narcissíca. A “boa tradução” nesse caso, seria aquela que não causa estranhamento na minha língua, que naturalize o texto (e sua poética) ao ponto de não ser percebida. Traduzindo dessa forma, estamos disposto a transformar o outro mas não a nos transformar com ele, a acolhe-lo. Em determinadas épocas e lugares, acreditou-se até que traduzindo o outro na minha língua eu o melhoro, clarifico-o. A tradução para determinadas línguas (ditas de prestígios históricos) enobrece e clarifica o confuso do outro, o incompreensivo do que pensa diferente, de outra forma.
As concepções modernas inauguradas por Benjamin na Tarefa-renúncia do tradutor (2008), e mais tarde com Meschonnic e sua poética do traduzir (1999), Berman na Tradução e a Letra (2007), Venuti denunciando os Escândalos da Tradução (2002), Haroldo de Campos com sua concepção antropófaga de transcriação (1967, 1992), levaram os estudos da tradução a re-pensar a relação com outros modos de dizer em termos poéticos, éticos, históricos.
Benjamin definindo a tradução como forma e transformação vê nela a possibilidade de linguagem pura (reine sprache) na fruição/complementação das línguas e dos discursos.  Edouard Glissant, em termos benjaminianos a considera uma das artes mais importante da contemporaneidade (e do futuro) e alerta:
“Doravante, o que toda tradução sugere em seu princípio mesmo, através da própria passagem que ela realizaria de uma língua para a outra, é a soberania de todas as línguas do mundo. E, por essa razão, a tradução é o indício e a evidência de que temos que conceber em nosso imaginário essa totalidade das línguas. Da mesma forma que o escritor realiza essa totalidade, doravante, através da prática de sua língua de expressão, o tradutor manifesta essa totalidade através da passagem de uma língua para uma outra, sendo confrontado com a unicidade de cada uma dessas línguas.” (GLISSANT, 2001, p. 48).

O sujeito tradutor, leitor e escritor, age como agente de contato no mundo e o traduzir se torna uma prática que mestiça as culturas, as épocas, as línguas. Arte do cruzamento que aspira a totalidade mundo. Nesse sentido, a tradução é uma poética fundamental para uma crítica da errância, da vertigem, do imprevisível, enfim do exílio. Glissant a define enquanto “arte da fuga” em que a primeira língua não se apaga na outra e nem a segunda renuncia a se apresentar: “A tradução é fuga, o que significa de uma forma belíssima, renúncia. O que talvez seja mais necessário adivinhar no ato de traduzir é a beleza dessa renúncia.” (2001, p. 49)
A concepção benjaminiana de tarefa-renúncia se liga hoje a questão do consentimento dessa renúncia, já que ela constitui a parte de si mesmo que se abandona, em toda e qualquer poética, ao outro. A renúncia é um modo de ação, de consentimento ao abandono para se abrir ao diferente, é um pensar crítico, do exílio, do movimento, da errância, e da mestiçagem.
Nessa (des)territorialização do pensamento não há mais “ser”, essência. A tradução-devir é um movimento perpétuo de interpenetrabilidade cultural e linguística onde a definição do “ser” é impossível: “O ser é uma grande, nobre e incomensurável invenção do ocidente, e particularmente da filosofia grega.” (GLISSANT, 2001, P. 124). É na imprevisibilidade do “sendo”, nos diz Glissant, do devir que somos levados a abandonar os pensamentos de sistema e de dualidades platônicas e pensar a tradução e as poéticas contemporâneas no âmbito da interrogação/interpelação, do deslocamento, das ambiguidades, dos estranhamentos e, como diz Viveiros de Castro, dos equivocos:
 “Traduzir é presumir que há desde sempre e para sempre um equívoco; é comunicar pela diferença, em vez de silenciar o Outro ao presumir uma univocidade originária e uma redundância última _uma semelhança essencial_ entre o que ele e nos “estamos dizendo” (Viveiros de Castro, Metáfisicas Canibais, 2009, p.91)

O sujeito da poética mestiça, o exilado, é múltiplo, não se sabe de onde vem porque ele mesmo não sabe e não controla os lugares do seu discurso. Pensar esse múltiplo é questionar as identidades-raízes sem abandonar a noção de identidade enquanto conquista da modernidade, mas ceder lugar ao que Glissant denomina, na esteira de Deleuze e Guatarri de “identidades-rizomas”:
“Não se trata de desenraizar, mas sim de conceber a raiz como menos intolerante, menos sectária: uma identidade-raiz que não mata à sua volta, mas que ao contrario estende suas ramificações em direção aos outros. Ou seja, é aquilo que chamo de identidade-rizoma, a partir de Deleuze e Guatarri.” (Glissant, 2001, p. 130).

Na crítica do exílio, a noção de classicismo tende, então, a desaparecer. A história e historiografia da literatura, assim como a teoria e crítica literária, especialmente no mundo (chamado) ocidental, foram tensionadas segundo Edward Said (2011) pela ideia de que os valores de toda literatura alicerçam-se na não-dita pretensão de se tornar valores universais válidos para todos. Na opinião de Glissant que também é a nossa, “pensar que o seu próprio valor participa de um entrecruzamento de valores da totalidade mundo, é um projeto muito maior, nobre e generoso do que o projeto de tentar fazer com que o seu próprio valor se torne válido para o mundo inteiro”, e mais, “Penso que precisamos abandonar a ideia do universal” (Glissant, 2001, p. 134).
Os discursos a pretensão universal se fundamentam nas noções de representação e de identidade e impedem/impossibilitam o exercício da crítica em prol de um pensamento (ainda) único: “Derrière la representation il y a toujours une identité. Mais derrière l’identité il n’y a rien, elle est auto-fondatrice. Ou alors, il y a Dieu!!??” (LAPLANTINE, 2010) [Atrás da representação, há sempre uma identidade. Mas atrás da identidade não há nada, ela é auto-fundadora. Ou então, há Deus!!??]. O sentido da representação continua situado na identidade-raiz (um sentido verdadeiro da origem única, pura) quando o sentido é movidiço e não se dá na relação de pura presença.
Falar de intraduzibilidade, de indizível e inefável, supõe uma impossível compreensão e uma imobilidade (seria melhor cada um ficar onde está). Há tradução porque as línguas são diferentes, mas elas podem se compreender e se traduzir umas nas outras, porque não são impermeáveis, fechadas nela-mesmas. Jakobson no seu ensaio Aspectos linguísticos da tradução já tensiona: “As línguas diferem no que elas devem expressar não nos que elas podem expressar” (2003, p. 69), e grifa os dois modalizantes, poder/dever. 
Laplantine faz a crítica às noções de representação e identidade, e apresenta o conceito de mestiçagem:
“Le métissage c’est un concept, c’est un percept, c’est un affect. Je dirais que c’est un décept aussi. Il y a de la deception, il y a du manqué, de l’arrachement, pas seulement de la jubilation solaire, de la satisfaction, etc,. le métissage commence à partir du moment où l’on fait l’expérience de l’étrangeté.” (LAPLANTINE, 2010, s/p)

[A mestiçagem é um conceito, é um percepto, é um afecto. Diria até que é um decepto também. Há algo de decepção, há falta, arrancamento, não só jubilação solar, da satisfação, etc. A mestiçagem começa a partir do momento em que fazemos experiencia do estrangeiro.]
E Alexis Nouss (2001, s/p) acrescenta, a mestiçagem:
“ne doit pas être confondu avec le mélange, qui est fusion, ou l'hybridité, qui produit un nouvel ensemble. Dans le devenir métis, imprévisible et instable, jamais accompli et jamais définitif, les composantes conservent leur identité et leur histoire”. (Nouss, A. 2001)

[não deve ser confundida com a mistura, que é fusão, ou a hibridez que produz um novo conjunto. No devir mestiço, imprevisível e instável, nunca realizado e nunca definitivo, os componentes conservam sua identidade e sua história.]

A disjunção entre alteridade e identidade aponta para fronteiras intransponíveis, quando não só somos outro, mas o outro habita em nós. A mestiçagem surge do encontro e do reconhecimento da alteridade em nos-mesmos, não em oposição à identidade. Meschonnic nos lembra que:
“À notre époque —et peut-être que seule la traduction comme terrain de pratique et de réflexion peut le montrer —on commence [...] à passer d ́une opposition entre identité et altérité à la reconnaissance d ́une intéraction entre identité et altérité, telle que l’identité apparaît comme n’advenant que par l’altérité, par une pluralisation dans la logique des rapports interculturels.” (MESCHONNIC, 1999, p. 73).
                     
[Em nossa época _ e talvez sómente a tradução como terreno de prática e de reflexão possa mostra-lo_ começa-se a passar de uma oposição entre identidade e alteridade ao reconhecimento de uma interação entre identidade e alteridade, tal que a identidade apareça como advindo sómente pela alteridade, por uma pluralização na lógica das relações interculturais.]

A noção de alteridade não oferece garantias semânticas, e levanta a questão do “outro” como sendo ainda considerado o de “fora” frente a um de “dentro”. Além disso, a alteridade é fugaz. A alteridade altera, i.e., o outro perturba, transforma, inclusive o modo de dizer e o modo de pensar.
Para Meschonnic, a relação à alteridade não passa pela anexação: “pour comprendre l’autre, il ne faut pas se l’annexer, mais devenir son hôte [...] Comprendre quelque chose d’autre, ce n’est pas s’annexer la chose, c’est se transférer par un décentrement au centre même de l’autre” (Meschonnic, 1973: 411-412) [para compreender o outro, não se deve anexá-lo, mas tornar-se seu anfitrião […]. Compreender outra coisa, não é anexar a coisa, é se tranferir por um descentramento no centro mesmo do outro.].
Para Berman, a tradução que se torna a “albergue do estrangeiro” se protege das tendências etnocêntricas. A abertura à alteridade predispõe a tradução ao dialogo das culturas. Esta abertura se opõe à violência, à conquista da “missão civilizadora” nos planos discursivos e militares (SAID, 2011, 2003). Essa aproximação cria uma relação indireta entre as práticas tradutórias e as práticas coercitivas da colonização cujo objetivo era a anexação do outro em que a relação de força suscita questões de natureza ética. A transformação do mesmo pela mediação do estrangeiro é prova, pela abertura a uma relação com o outro, de uma visada ética preconizada por Berman. O tradutor precisa fazer prova de uma sensibilidade política e ideológica e essa sensibilidade passa por uma ética e uma analítica:
“À l’éthique de la traduction doit s’ajouter une analytique. Le traducteur doit se mettre en analyse, repérer les systèmes de déformation qui menacent sa pratique et opèrent de façon inconsciente au niveau de ses choix linguistiques et littéraires. Systèmes qui relèvent simultanément des régistres de langue, de l’idéologie, de la littérature et du psychisme du traducteur” (Berman 1984, p.19)

[À ética da tradução deve se acrescentar uma analítica. O tradutor deve se por em análise, reparar nos sistemas de deformação que ameaçam sua prática e operam de maneira inconciente no nível das suas escolhas linguisticas e literárias. Sistemas que resultam simultaneamente dos registros de língua, da ideologia, da literatura e do psiquismo do tradutor].

O descentramento da crítica do exílio provoca uma concepção de tradução que passa a ser vista como encontro e mestiçagem (Nouss, 2001) de períodos, culturas, nações e línguas.
A tradução deve ser compreendida como uma atitude que suscita uma epistemologia e uma ética, e se define pela ambiguidade e a heterogeneidade. Ambiguidade porque permite pensar os contrários em termos de reconciliação: não é nem branca, nem preta, e por fruir da liberdade de poder ser as duas em alternância ou não. A heterogeneidade porque cria uma tensão que impede a fixação dos componentes. A Tradução como crítica do exílio cria então uma poética do devir e passa pela lógica do não-pertencer e da heterogeneidade como fator de criatividade.
O Tradutor, escritor paratópico não se fixa na posição do estrangeiro, mas faz do deslocamento um espaço livre onde pode acolher todos os pertencimentos. Estamos no pensamento do exílio, o de ter renunciado ao país natal para melhor entende-lo. A poética migrante cria uma distância com o lugar de onde vem sem no entanto fazer dessa distância um abismo intransponível. A escrita da ambiguidade criada pelo exílio, se compreende por ser ao mesmo tempo singular pelo percurso e múltiplo pela memória.

Alexis Nouss (2001), definindo a tradução como prática mestiça, reconhece que ela se situa entre o mesmo e o outro, nem o mesmo nem o outro, mas é um devir, um dizer que jamais se fecha frente ao dito que produz e que manifesta. Essa tensão oriunda de sua natureza em devir explica e permite o fenômeno das múltiplas traduções de um mesmo texto.
A tradução nesta perspectiva não é uma conversão do outro no mesmo. O traduzir é uma relação que mantemos com outrem, o outro discurso, e se caracteriza por isso como diálogo. As prosas do mundo têm cores, melodias, imagens diferentes e a tradução não deve apagar a diferença, mas forçar nossa língua a falar com outras cores, outros ritmos.
Pensar a tradução como crítica do exílio, é pensá-la a partir de uma po-ética e conceber o processo numa perspectiva dialógica: “L’essence de la traduction est d’être ouverture, dialogue, métissage, décentrement. Elle est mise en rapport, ou ele n’est rien” (BERMAN, 1984, p. 16). [A essência da tradução é de ser abertura, diálogo, mestiçagem, descentramento. Ela é relação ou não é nada].

Referências bibliográficas:

ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.

BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo, Editora 34, 2011.

BERMAN, A. A tradução e a Letra ou o albergue do longíquo. trad. Marie-Hélène Catherine Torres; Mauri Furlan; Andreia Guerini. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.

BERMAN, A. L’épreuve de l’étranger; Culture et traduction en Alemagne romantique; Herder; Goethe; Schlegel; Novalis; Humboldt; Schleiermacher; Hölderlin. Paris: Gallimard, 1984.

BORGES, J. L. L’auteur et autres textes. Paris: Gallimard, 1982.
CASTELLO BRANCO, L. A tarefa do tradutor de Walter Benjamin: quarto traducões para o português. Belo Horizonte, Fale/UFMG, 2008.

DE CAMPOS, H. Metalinguagem, Petrópolis, Vozes, 1967.

DE CAMPOS, H. Metalinguagem e outras metas. São Paulo, Perspectiva, 1992.

DELEUZE, G. Rhizome. Paris: Editions de minuit, 1976.

DELEUZE, G. Logique du sens. Paris, Les editions de Minuit, 1969.

DELEUZE, G. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo, Perspectiva, 2003.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce Albergaria Rocha. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF, 2005.

JAKOBSON, “Aspectos linguístico da tradução”. In: Linguística e Comunicação. Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo, Cultrix, 2003.

LAPLANTINE, F. & NOUSS, A. Métissage, de Arcimboldo a Zombi. Paris, Pauvert, 2001.

LAPLANTINE, F. Je, nous et les autres. Paris: Editions Le Pommier, Collection “Manifeste”, 2010.

MESCHONNIC, H. Critique du rythme: anthropologie historique du langage. Paris: Verdier, 1982.

MESCHONNIC, H. Poética do traduzir. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo, SP, Perspectiva, 2010.

MESCHONNIC, H. Poétique du traduire. Paris: Verdier, 1999.

MESCHONNIC, H. Politique et éthique du traduire. Paris, Gallimard,
acesso 30/04/2015.

SAID, E. W. Cultura e Imperialismo. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo, SP,
Companhia das Letras, 2011.

SAID, E. W. O Orientalismo: O oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

SAID, E. W. Reflexão sobre o exílio e outros ensaios. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

VENUTI, Lawrence. Escândalos da tradução: por uma ética da diferença. Tradução de Laureano Pelegrin, Lucinéia Marcelino Villel, Marileide Dias Esqueda e Valéria Biondo. Bauru, SP: EDUSC, 2002.

VIVEIROS DE CASTRO, E., Metafísicas Canibais, Cosac-Naify, São Paulo, 2009.

RESUMOS DAS COMUNICAÇÕES DO I ENCONTRO DE CRÍTICA E TRADUÇÃO DO EXÍLIO



ANÁLISE E CRÍTICA DA POÉTICA “PÓS-” (COLONIAL/MODERNA) NA TRADUÇÃO
DOS CONTOS NO NUTS E RECIPE FOR A STONE MEAL DE AMA ATA AIDOO

Rodrigo Rodrigues Martins[1] (PIBIC – UnB)

A estruturar o processo tradutório de três obras contemporâneas, apresentam-se aqui os alicerces teóricos de um projeto de tradução descentrado e instituído na diferença. Amparados na leitura e crítica de textos referência em estudos pós-coloniais, pós-modernos e da tradução, nos instrumentamos para traduzir três textos ditos pós-coloniais -  discutimos a problemática mais à frente. São estes: os contos No Nuts e Recipe for a Stone Meal, no livro Diplomatic Pounds & Other Short Stories(2012) de Ama Ata Aidoo, e o ensaio teórico filosófico Is the Post – in Postmodernism the Post – in Postcolonial? (1991) de Kwame Anthony Appiah.
De um lado, nos amparamos nas noções e conceitos de teorias contemporâneas da tradução para enfrentar as questões que emergem no ato de traduzir. Do outro, a tradução (práxis) põe à prova a aplicabilidade – senão permeabilidade – destes conceitos no escrever destas obras em um outro sistema linguístico. O método não dissocia a teoria da prática; pelo contrário, vale-se de elementos e resultados da última - aqui exemplificados por excertos das traduções -  para se constituir, precisamente no espaço de diálogo e confronto da dualidade teoria-prática. Por esta razão, trabalhamos o embasamento teórico sempre em contato com a tradução, em um movimento do abstrato ao material, do material ao abstrato.

SOBRE OS AUTORES
Christina Ama Ata Aidoo é escritora e professora universitária. Nasce em Saltpond, Gana, 1942. Filha da realeza Fante (Akon), cresce em Saltpond (sul de Gana). Em 1964, forma-se em Bacharelado em Artes em Inglês (Arts in English) na Universidade de Gana (Legon). No mesmo ano, publica o primeiro romance, Dillema of a Ghost (1964). Foi, ainda, Ministra da Educação em 1982 e tem 11 livros publicado até esta data.

Kwame Anthony Appiah nasce em 1954 em Londres, Inglaterra e cresce em Kumasi, Gana. É filósofo, teórico da cultura, romancista e professor universitário, principalmente nos Estados Unidos – já lecionou em Princeton, NYU, Yale, Harvard, Cornell, e atualmente leciona na Duke University em Durham, North Carolina.


 ANALISE POÉTICA E ESTILÍSTICA DAS OBRAS

Em Poética do Traduzir (2010), Henri Meschonnic nos propõe uma nova forma de pensar a tradução. Segundo o autor, esta não se resumiria a uma operação de passagem de uma língua para a outra ou de uma cultura para a outra; tampouco seria um instrumento de comunicação, servidor das transmissões de dados ou referentes. Pelo contrário, nos propõe pensá-la como uma poética. E para tanto, deve-se ter o discurso (da ordem do contínuo) como unidade de tradução, não mais o signo linguístico (da ordem do descontínuo).
Para analisar a poética e o estilo dos textos de Aidoo e Appiah, faz-se necessário, primeiro, apurar estes conceitos. Na concepção de Meschonnic, a estilística se faz na língua e a poética na linguagem. A língua, enquanto sistematização das falas, é regida (e constituída) por um conjunto de regras gramaticais e sintáticas; ela é da ordem do descontínuo, e tem o signo linguístico como sua unidade.  De tal modo, a estilística opera sobre/na língua e em suas regras. Diversamente, a poética se estabelece na apropriação da linguagem por um sujeito. É particular (individual), actancial, marcada no tempo (histórica) - da ordem do contínuo.
Orientados por essas noções, apresentamos uma síntese do estilo e poética de cada um dos dois autores. A escrita de Aidoo é marcada por longos parágrafos de narrativa, estruturados por curtas frases metonímicas e entremeados à ricos diálogos. Embora escritos em Inglês, os contos trazem expressões, termos e onomatopeias em línguas do grupo etnolinguístico Akan[2] e em Francês. Percebe-se, ainda, a interferência destes sistemas linguísticos na sintaxe da língua inglesa, além dos desvios à norma do standard english (Inglês coiné), muitas vezes empregados pela autora para assemelhar os dizeres das personagens à fala local – usando de contrações, omissões, gírias, onomatopeias, entre outros.
Nas estórias, evidencia-se a poética realista da autora ganense -  na sua recusa em relativizar, reduzir ou amortizar as dificuldades cotidianas do povo ganense. É especialmente notório no conto Receita para uma Refeição de Pedras [Recipe for a Stone Meal in Diplomatic Pounds & Other Short Stories (2012) – Tradução nossa]. Este narra a história de Sibi, mãe que se dirige à um campo de refugiados em busca de atendimento médico para seus filhos, que estão enfermos – senão morrendo - de fome. Em duas páginas, a autora esboça a gravidade das questões de gênero e de raça no seu país, em uma sociedade de valores ainda marcadamente colonialistas (questão que discutimos mais adiante). Em poucas palavras, Aidoo nos abre mundos inteiros.
O estilo de Appiah é outro. O ganense ensaia suas ideias em longas frases, longos parágrafos, com muitos conectores lógicos, orações coordenadas e subordinadas. Usa de termos e expressões em outras línguas, muitas vezes criando palavras (neologismos) ao traduzir expressões do italiano, do latim e, principalmente, do Francês para o Inglês. Sua poética é também realista: nada eufêmico, costura em seu texto uma crítica aos paradigmas conceituais do pós-modernismo e da pós-colonialidade, das reduções que estas categorias-modelos operam na leitura e, portanto, na tradução, das obras africanas e de obras pós-coloniais como um todo. Está sempre a desestabilizar os essencialismos.

ANALÍTICA DA TRADUÇÃO E A EDUCAÇÃO À ESTRANHEZA

Em A Tradução e a Letra, ou, O Albergue Do Longínquo (2007), Antoine Berman apresenta uma análise crítica dos processos que acometem à maior parte das traduções no ocidente. No percurso, o autor nos propõe uma analítica (análise e destruição) da tradução, para desestabilizar e desconstruir o pensamento ocidental universalista. Nas suas palavras:A analítica da tradução é a crítica do etnocentrismo, do hipertextualismo e do platonismo da figura tradicional da tradução – no Ocidente. Ela estuda esses três traços fundamentais nas suas características gerais, e as formas concretas pelas quais eles se manifestam numa tradução” (BERMAN, 2007, pág.26).
Berman nos propõe a não-naturalização da forma do texto original na tradução. Impelidas pelo pensamento etnocêntrico, grande parte das traduções no Ocidente domesticam a letra do original, seja para deixá-lo mais fácil ao leitor, seja para conservar a língua que o recebe, sem alterá-la.  O caminho para se traduzir o discurso do outro em Berman é a tradução da Letra. Traduzindo-se não só as palavras, mas as construções sintagmáticas, os jogos de significantes (aliterações, repetições, omissões, inversões etc) e o ritmo, nos abrimos, e abrimos nossa língua, para essas manifestações poéticas inéditas.
Neste processo, devemos também nos educar para o estranho, para o outro. Como diz Berman “Precisa-se, antes, como no caso da ciência, de uma educação à estranheza"(BERMAN, 2007, pág. 66). Deste pensamento, desponta a segunda versão da tradução de um excerto (ver tabela 1), onde não naturalizamos as construções, o jogo de significantes ou a expressão idiomática what on Earth.

Tabela 1 - Excerto da Tradução de “Is the Post –
in Postmodernism  the Post – in Postcolonial? (1991) – pág. 339
Original
Tradução – Versão 01
Tradução – Versão 02
Kouakou may judge other artists by his own standards (what on Earth else could he, could anyone, do save make no judgment at all?), but to suppose that he is unaware  that there are other standards within Africa (…)

Kouakou pode até julgar outros artistas pelos seus próprios parâmetros (o que diabos poderia ele, ou qualquer outro, fazer além de não emitir qualquer julgamento?), mas supor que ele não está ciente de que existem outros parâmetros na África (...)
Kouakou pode julgar outros artistas pelos seus próprios parâmetros (onde mais na Terra poderia ele, ou qualquer outro, salvar-se de fazer todo e qualquer julgamento?), mas supor que ele não está ciente de que existem outros parâmetros na África (...)


ESTÉTICA DA INTERLINGUAGEM

Em Tradução e criação interlíngual na zona de contato: escrita limítrofe no Quebec[3], Sherry Simon apresenta uma reflexão sobre a escrita, estética e tradução de obras literárias contemporâneas em zonas de contato cultural e linguístico. Segundo a autora, a estética interlinguística ou da interlinguagem [aesthetics of interlanguage], o escrever em duas ou mais línguas no mesmo texto, é característica das obras do Quebec e outras zonas limítrofes.
Os textos de Appiah e Aidoo também incorporam essa estética interlinguística. Escrevem o Inglês com e por meio de outras línguas, de outras linguagens. Para preservar esse aspecto fundamental ao texto na tradução, uma estratégia possível em determinados momentos é a não-tradução[4] de termos e expressões em uma língua alheia (extra) ao par linguístico com que se trabalha – neste caso o Francês.
No exemplo abaixo, percebe-se como na primeira versão da tradução a tradução descontruímos essa estética ao traduzir a expressão em Francês “en route” para “à caminho”. Na primeira versão, a marca francesa é absolutamente apagada. Por esta razão, decidimos por não traduzi-la, recriando a estética de interlinguagem na versão 02 – agora do Francês com o Português:

Tabela 1 - Excerto da Tradução de  Is the Post –
in Postmodernism  the Post – in Postcolonial? (1991) – pág. 341
Original
Tradução – Versão 01
Tradução – Versão 02
The influence of the Western world is revealed in the clothes and bicycle of this neo-traditional Yoruba sculpture which probably represents a merchant en route to market

A influência do mundo ocidental se revela nas roupas e na bicicleta desta escultura Yoruba neo-tradicional que provavelmente representa um comerciante a caminho do mercado.
A influência do mundo ocidental se revela nas roupas e na bicicleta desta escultura Yoruba neo-tradicional que provavelmente representa um comerciante en route do mercado.


O “PÓS-“ EM PÓS-MODERNO E PÓS-COLONIAL

Em Is the Post- in Postmodernism the Post- in Postcolonial?  [Será o Pós – em Pós-modernismo o Pós - em Pós-Colonial? – Tradução nossa] Appiah reflete o paradigma da pós-modernidade, da pós-colonialidade e a commoditização da obra de arte. A tese é efetiva para pensar/questionar toda e qualquer análise puramente política destas problemáticas, enquanto demonstra a inconsistência (ou não ocorrência) histórica destes paradigmas, partindo do colonialismo e da modernidade na visão Weberiana.
 Politicamente, a pós-colonialidade poderia ser definida pelo momento histórico em que se transcendem os regimes coloniais – o pós-independência. Entretanto, não se percebe essa libertação e/ou liberação do colonialismo no âmbito da cultura e, principalmente, da vida dos habitantes destes locais. Similarmente, quando analisada sob uma perspectiva temporal positivista, a pós-modernidade estabeleceria a superação do paradigma ocidental moderno - e, portanto, dos seus valores e ideias – em todos os domínios onde fosse adotada. Haveria, então, uma superação da racionalidade universal, a secularização da religião e a extinção de autoridades carismáticas em todos os regimes (ditos) pós-modernos. Novamente, esta teoria (e modelo) não se comprova historicamente, a revelar-se nos discursos, na arte, na religião e nas produções literárias do período pós-independência nas ex-colônias.
Emerge, neste contexto, uma questão essencial: se o pós-colonial não instituiu de fato uma superação do colonialismo, e o pós-moderno não suplantou todos os valores modernos, qual é o valor do termo (prefixo) “pós-” diante destes conceitos? Essa problematização terá sua implicação direta no processo de tradução, enquanto suscita uma crítica à duvidosa estabilidade ontológica e fixidez de sentidos destes conceitos – os quais Appiah desestabiliza a todo momento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A leitura e a crítica de textos referência em estudos pós-coloniais, pós-modernos e da tradução nos apontam as inconsistências de paradigmas conceituais universalistas, como o pós-moderno e o pós-colonial. Nos prestamos a refletir e desconstruir as reduções que estes paradigmas operam sobre obras engendradas nestas categorias. Contudo, não buscamos com isso construir novos pontos-comuns na tradução, tampouco uma teoria para substituir todas as anteriores. Pelo contrário, instalados no espaço do outro e da diferença, suscitamos o diálogo e o confronto de uma multiplicidade de conceitos.
Da fundamentação teórica recém-apresentada, da análise estilística e poética das três obras, e das problematizações levantadas ao longo do processo tradutório, constitui-se um projeto de tradução "pós-", que abre espaço, com um gesto poético, para a análise e recriação linguística de duas poéticas em devir: a poética singular de Ama Ata Aidoo e de Kwame Anthony Appiah.

BIBLIOGRAFIA

AIDOO, Ama Ata. “No Nuts”, in Diplomatic Pounds & Other stories. Oxfordshire, UK: Ayebia Clarke Publishing Limited, 2012.

AIDOO, Ama Ata. “Recipe For A Stone Meal”, in Diplomatic Pounds & Other stories. Oxfordshire, UK: Ayebia Clarke Publishing Limited, 2012.

APPIAH, Kwame Anthony. Is the Post- in Postmodernism the Post- in Postcolonial? in Critical Inquiry Vol. 17, No. 2 (Winter, 1991), pp. 336-357. Chicago, US: The University of Chicago Press, 1991.

BASSNETT, S. Post colonial Translation: theory & practice. Nova Iorque, EUA, Routledge, 2002.

BERMAN, Antoine.  A tradução e a letra, ou, o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan e Andreia Guerini. Rio de Janeiro, RJ: 7Letras/PGET, 2007.

MESCHONNIC, H. Poética do traduzir. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo, SP, Perspectiva, 2010.

SAID, Edward W.  Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo, SP, Companhia das Letras, 2007.


[1] Graduando de Tradução/Inglês do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília. Bolsista de iniciação científica sob a orientação de Alice Maria de Araújo Ferreira. Estudante-pesquisador do Grupo Tradução Etnográfica e Poéticas do Devir.
[2] AKAN é uma meta-etnia e um grupo etnolinguístico no Golfo da Guinea- atualmente Gana e Costa do Marfim, no oeste da África. Os Akan são a maior meta-etnia e grupo etnolinguístico dos dois países, com uma população de quase 20 milhões de pessoas. A língua Akan é também conhecida como Twi-Fante.
[3] Translating and interlingual creation in the contact zone: border writing in Quebec  - BASSNETT, 2002, pág 66 - Tradução nossa
[4] Non-translation[não-tradução]: O conceito de não-tradução de Jacques Brault, inspirado no conceito de non-poem[não-poema] de Gaston Miron, responde ao apelo da alteridade da cultura de língua inglesa em um gesto-duplo de apropriação e admiração. Na sua obra, o conceito é aplicado na remoção dos títulos das obras, incorporando-os no original(BASSNETT, pág 66 - Tradução nossa)