quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Tac-tic à la rue de Pinguoin

        O coletivo En classe et en scène (Disponível em: https://www.facebook.com/enclasseetenscene/) , criado em 2010, composto de estudantes de Letras da UnB – Universidade de Brasília, apresenta todos os anos, desde 2011, espetáculos em francês e em português, buscando abordar temáticas como as guerras na África, o apedrejamento de mulheres e as questões de gênero de forma geral. Em 2011, ano de sua primeira apresentação, a peça Catharsis, texto de Gustave Akakpo, marca a estreia do grupo. Nos anos seguintes foram À petites pierres e Tac-tic à la Rue des Pingouins do mesmo autor.
      Em 2015, Dois perdidos numa noite suja de Plínio Marcos, em uma versão em francês e A entrevista, de Samir Yazbek, em português dão continuidade ao projeto de pesquisa do grupo. Voltamos este ano com a peça La mère trop tôt, retomando nossa paixão pelos textos de Gustave Akakpo e pelo teatro.
        Gustave Akakpo, nascido em 1974, na cidade de Aného, no Togo, é escritor, ilustrador, contador e ator. É membro da Associação togolesa Escale d’écritures. Participou de diversas résidences et chantiers (residências e workshops) de escrita no Togo, França, Bélgica, Tunísia e Síria. Em 2004, ganhou o prêmio SACD de dramaturgia francófona com a peça La mère trop tôt, aqui apresentada, e também o sexto Prêmio de escrita teatral de Guérande em 2006 com a peça À Petites Pierres, encenada pelo grupo En classe et en scène no ano de 2013.
      A peça, Tac-tic à la rue de Pinguoins publicada na coletânea 4 petites comédies pour une Comédie (2004), conta a história de um rapaz que acorda em um corpo de moça. O mal-estar com esse corpo que não é seu desperta várias inquietações e reflexões sobre questões sexuais, emocionais,
psicológicas e sociais do fato de ser um homem em um corpo de mulher.
Tac-tic na rua dos Pinguins
Gustave Akakpo
Tradução: Maria da Glória Magalhães dos Reis,
Danilo de Sousa,
Íslia Vaz


Que que eu tô fazendo aqui? Que fazem esses olhos jogados na minha direção? Que eles estão procurando?
Eu sei. Não, acho que não.
Como saber o que fazer quando você tem a impressão que a cada passo, vários olhares te esquartejam, como se essas duplas de olhos soubessem.

- Vai na esquina pra ver se eu tô lá!

Tenho vontade de explodir esse grito na fuça deles, nesses olhos cortantes que me furam até o gozo.
Já tá de noite. Três horas – já? – Como a escuridãoengoliu a cidade. Eles, eles sabem por que eu me encontro aqui diante deles. Estão esperando um espetáculo.
É por isso que vieram, comportadamente sentados, gozando de me penetrar.
Não, eles não sabem.
Estou sozinho, o mais sozinho do mundo. Mas...
Uma mudança! Sim, alguma coisa que... bum, e minha vida não seria mais esse corredor sem pé nem cabeça, um beco sem saída, avançando com a cabeça baixa como um burro contra uma parede.
O que mais querer além de um pequeno bum nesta porcaria de vida, quando se tem a minha idade, mas que não se aparenta, essa bela idade. Porque a preguiça. O corpo que correu mais rápido que o tempo.
Mas, qualquer coisa, menos isso.
Vinte anos: eu fixava eles na minha cabeça com um monte de projetos, tudo o que se imagina que a gente pode aprontar nessa “bela idade” no momento em que  a gente ouve os que já digeriram ela, eles que falam disso com aquele flashback agradavelmente picante nos olhos.
Eu, meus vinte e tantos anos passados, do futuro, só vejo poeira.
Bem que eu tentei me projetar no futuro. Mas eu dou de caracom um destino imbecil e teimoso como... como uma estátua de ditador africano ou um míssil de desastror americano.
Agora, eu fiquei patético. A impressão de me esvaziar como num espetáculo diante desses olhos que sabem tudo de mim, e apesar disso me expõe ainda mais.
Não. Eles não sabem: eles não podem nada – absolutamente nada- eles só têm a mim para se preocupar... porque mesmo eu... difícil de acreditar.
É claro, outra coisa, eu sempre desejei. Mas tudo menos isso.

Eu me chamo Pascal. Tenho que ficar me repetindo isso muitas vezes, senão eu me deixo roer por essa farsa. Pascal sem “e”. Isso também, é preciso deixar claro. Sou do sexo masculino; eu sei, não dá pra perceber muito...
Merda, uma bela manhã se encontrar na cama em um corpo de mulher! Eu me senti em bons lençóis.
Enfiar na cabeça que este corpo, estes peitos, estes lábios e tudo o que veio numa bela manhã não passa de uma grande brincadeira. Não acreditar na imagem que o espelho me joga! Puro drama. O diretor surgirá de uma hora para outra, “Corta! É pra câmera, crianças!”, e eu voltarei a morar na minha vida habitual de rapaz de 20 anos.

Não, esse corpo persiste. Cinco dias já, e as noites, sombrias, todos esses olhares que eu adivinho sobre mim como flechas pontudas. Essas pontas afiadas se excitam ao ver um predador transformado em uma presa fresquinha. Cinco dias já dentro do abismo da farsa que passa. E, no entanto, me recuso a acreditar: com certeza estou num palco diante de um público que, no final, vai me aplaudir.  E eu, no meu camarim, o espelho me oferecerá enfim minha cara de homem. “Não o cara genial do século, mas charmoso, e com uma nota 7 na escala de boniteza”, como dizem sempre as meninas.Mas ela, ela tá sempre lá, aquela que se diz eu e gostaria que a chamassem de Pascale com “e”.
Eu me chamo Pascale. Pascale com “e”. Eu fico me repetindo.
Desde que aconteceu, eu me repito sempre. Tenho que repetir  já que ninguém parece se lembrar. Isso me deixa louca.
Minha mãe. Até mesmo minha mãe. No momento em que me percebi, naquela manhã, num corpo de homem, pensei: ela vai imaginar que eu estou trazendo rapazes para o meu quarto.
Já tenho idade pra isso:
- Vinte anos, você não vai arrumar um namoradinho, não, minha querida?
Eu penso toda vez: não mamãe, não me enche o saco... sem responder nada. Mas ela sabe que eles não me interessam.
Então, pensei: se ela der de frente com esse cara no meu quarto, ela vai pensar besteira. Eu não gostaria que ela ficasse imaginando que fico fornicando bobagens nas costas dela. Mas “Bom dia”, ela me disse quando me viu naquela manhã. “Seu pai ligou”, ela continuou enquanto eu alucinava de ver ela falar comigo como se nada tivesse acontecido.
- Ele se lembrou bruscamente que tem um filho-homem, seu pai, depois de 10 anos de silêncio... e ele te mandou isso aqui pelo seu aniversário. Ele errou a data, é claro. Se te interessar você pode abrir, senão tem sempre espaço na lixeira.

Isso é a cara da minha mãe: uma delicadeza à flor da pele. Mas minha mãe, nesse nível de mudança, até ela: achar normal de me ver como homem... E o presente do meu pai: um par de sapatos masculinos!
Vasculhei minhas coisas, meu quarto; era um quarto de homem! Me sufoquei.
Desde então, o ar falta na minha respiração. Três dias já que eu saí de casa e que não olho para trás. Esse pesadelo – não saber mais nada de mim – me empurra para.... não sei.

Parar para dormir em algum lugar. Um rapaz bem que pode ficar tranquilo aqui. Uma garota teria acendido os olhares, despertado apetites. Mas em um corpo de rapaz, não há por que se roer de preocupação.

Preciso de ar!
Merda, estou andando igual mulherzinha. Farejo olhares esfomeados. Ao redor, por toda a parte nos mínimos cantinhos. O que um rapaz pensa de outro que faz tudo como uma menina, nesta hora da noite, em um lugar como este? “Uma presa”, ele se diz talvez lambendo os beiços caídos e o desejo hasteado como um poste. Não estou a salvo neste lugar perverso e mal falado.

Me comportar como um rapaz? De jeito nenhum. Eu sou Pascale com “e”. Está escuro , mas percebo  seus olhares, como se eu estivessenum espetáculo. Tenho até mesmo a sensação de que se eu esticasse a mão, um pouco, até ali, eu tocaria uma cabeça. Mas não, não tenho ninguém ao alcance da minha mão. Só a falta de ar ao alcance da garganta.
Preciso de ar, cada vez mais à medida que as vontades deles engordam.Eu tenho que conseguir, no mínimo por esta noite para que eu possa descansar aqui tranquilo. Fazer de conta que sou um rapaz para que os olhares deles se deitem como um cachorro obediente.
Eles imaginam a moça, então eles se excitam. Tenho que gritar para eles:

Eu me chamo Pascal sem “e”, sou um homem. Nem pensem em tentar nem mesmo uma pequena aproximação. Seus olhares de pau duro me bicam a pele e eu conheço a perversidade de vocês. Então, braços ao longo do corpo, pés nos lugares e o resto em repouso. Deitado!
Eles me ruminam, eu sei. Sou um rapaz, então, obrigatoriamente uma moça sozinha, de noite, num lugar como este. Eu mais do que ninguém conheçoo desejo que ela faz subir pelas entranhas.
Não ... estou sozinho, eu sei. Esses olhos? Só impressão.
Se apenas tudo isso – eu, esta noite, este corpo de outra pessoa – pudesse ser só impressão!
Pois isso não acontece na realidade, se ver transformado em mulher da noite para o dia. Nunca li em nenhum lugar que isso já aconteceu com alguém de uma só vez.
Merda, me remói o homem interior, essa sensação de ser outro!

Faz dez dias, eu me lembro, eu estava na manifestação na grande Praça da Independência. Eu digo sempre: “Podem contar comigo” em todas as manifestações contra a mundialização, a amerização, a exterminação, a pauperização, a bobalização, a genocidação... todo tipo de exação.Então assim, eu sei, deixei marcas, fotos de mim-homem. Eu vou conseguir encontrar elas em velhos jornais. No meu quarto, naquela manhã, tinha apenas fotos de mulheres, de mim-mulher, e minhas coisas. Bem no meu quarto!
Que besteira; é de se suicidar de rir!
Talvez eu devesse falar com ela, ela que tomou meu lugar; eu conseguiria talvez convencê-la. No teatro isso acontece frequentemente, um personagem que fala consigo mesmo. Então por que não na realidade, esta realidade que está brincando comigo.
Bom, vou falar com ela.

Ela (ele): Bom dia, Senhora! Eu me chamo Pascal sem “e”.
Ele (ela): Bom dia, Senhor! Eu me chamo Pascale com “e”.
Ela (ele): Tenho 20 anos, moro na Rua dos Pinguins.
Ele (ela): Eu também moro na Rua dos Pinguins, meu senhor.
Ela (ele): Eu moro no número 27.
Ele (ela): 27? Mas eu também, senhor. O senhor não vai me dizer que a sua casa é de cor laranja...
Ela (ele): É.
Ele (ela): Com um portão preto.
Ela (ele): Sim.
Ele (ela): E um código 27 4 27.
Ela (ele): Isso.
Ele (ela): E o senhor mora com a sua mãe?
Ela (ele):Hum-hum.
Ele (ela): E seu pai foi embora?
Ela (ele): Foi.
Ele (ela): O senhor gosta de chocolate?
Ela (ele): Gosto.
Ele (ela): Que estranhas coincidências!
Ela (ele): É verdade.
Ele (ela): Não são coincidências, Senhor, você pegou o meu lugar!
Ela (ele): Ei! Eu ia dizer a mesma coisa.

Já faz três dias que  tentei falar comigo. Não não, ou melhor, falar com ele que tomou meu lugar. Ainda não sei o que se passa na cabeça de um garoto.

Preciso de ar.

Acabei de falar comigo mesmo. Não não, ou melhor, falar com ela que tomou meu lugar. Isso não mudou nada. Ah... de repente, nem mesmo falei com ela. Só imaginei, para me dar a porra da ilusão de avançar para uma luz no fim do túnel.

De qualquer forma, não posso aceitar essa palhaçada, este corpo de mulher... dizer para mim mesmo que é o meu, conhece-lo, explorá-lo... eu que, rapaz, viajava nos corpos de outras garotas.

Não tive coragem de ir para a faculdade, nem para casa de amigos, nem de outras pessoas além da minha mãe que me conhecem, só para ver se eles se lembram de mim-homem.
Carole, ela deve estar pensando: “Que filho da mãe, ele é como todos os caras, me deu um bolo.”

Não, eu não fui ao encontro, mas eu te liguei, Carole, naquela maldita manhã, no teu celular. Eu tentei. Na véspera, a gente tinha se encontrado: amor à primeira vista: eu nem podia acreditar! E no dia seguinte: a gente ia se ver de novo; nossa primeira noite juntos, eu sentia, ia rolar, sem forçar a barra. Nossas vontades já tinham se prometido coisas, era só concretizar, tranquilamente.
Então naquela manhã, depois de tudo, pensei em você, no encontro daquela noite; depois eu disse para mim mesmo: Se minha mãe acha normal me ver como mulher... talvez eu nem tivesse te visto na véspera, ou talvez você fosse o homem e eu a mulher!
Achei seu número com o seu nome; Carole, não parece nome de homem. Então eu te liguei. No telefone a sua voz de mulher, fiquei com um nó nas tripas, mas precisava ir até o fim; eu perguntei se você era Carole.
- Sou.
- Me desculpa mas... você é realmente uma mulher?
E você, você pensou muito alto: Você é uma idiota ou o que?
Onde já se viu um homem se chamar Carole:
Joguei longe meu telefone, saí de casa na mesma hora, a loucura gritava na minha cabeça. Merda, além do mais, eu tava sentindo: com Carole, não seria como com as outras meninas.
Eu deveria talvez tentar falar com outros amigos, ver se, com alguns, não aconteceu a mesma palhaçada...

Sim, é exatamente o que eu deveria fazer: falar com amigos, pessoas que além da minha mãe me conhecem.

Fugi de casa. Eu me sentia tão louca que nem parei para pensar. Tenho que encontrar alguém que se lembre de mim-mulher.

É verdade que eu estava sentindo a vida me pegando pela garganta: minha mãe abandonada pelo meu pai, todos os meus amigos cujos pais divorciaram, os trambiques dos chefes de estado que deveriam nos servir de exemplo, os atentados, as guerras, a fome no mundo... tudo isso me quebrava a confiança no futuro e me jogava na cara a vontade de alguma coisa que mudaria tudo.

Mas ... tudo menos essa farsa.

Está chegando alguém. Um rapaz. Sem aquele ar predador. Um pouco tímido.

Ela (ele): Boa noite.
Ele (ela): Boa noite. Meu nome é Pascal.
Ela (ele): Que engraçado, eu também me chamo Pascale, com “e”, é claro.
https://www.youtube.com/watch?v=qHrcmjbgmE4&authuser=0 

Nenhum comentário:

Postar um comentário