quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Tac-tic à la rue de Pinguoin

        O coletivo En classe et en scène (Disponível em: https://www.facebook.com/enclasseetenscene/) , criado em 2010, composto de estudantes de Letras da UnB – Universidade de Brasília, apresenta todos os anos, desde 2011, espetáculos em francês e em português, buscando abordar temáticas como as guerras na África, o apedrejamento de mulheres e as questões de gênero de forma geral. Em 2011, ano de sua primeira apresentação, a peça Catharsis, texto de Gustave Akakpo, marca a estreia do grupo. Nos anos seguintes foram À petites pierres e Tac-tic à la Rue des Pingouins do mesmo autor.
      Em 2015, Dois perdidos numa noite suja de Plínio Marcos, em uma versão em francês e A entrevista, de Samir Yazbek, em português dão continuidade ao projeto de pesquisa do grupo. Voltamos este ano com a peça La mère trop tôt, retomando nossa paixão pelos textos de Gustave Akakpo e pelo teatro.
        Gustave Akakpo, nascido em 1974, na cidade de Aného, no Togo, é escritor, ilustrador, contador e ator. É membro da Associação togolesa Escale d’écritures. Participou de diversas résidences et chantiers (residências e workshops) de escrita no Togo, França, Bélgica, Tunísia e Síria. Em 2004, ganhou o prêmio SACD de dramaturgia francófona com a peça La mère trop tôt, aqui apresentada, e também o sexto Prêmio de escrita teatral de Guérande em 2006 com a peça À Petites Pierres, encenada pelo grupo En classe et en scène no ano de 2013.
      A peça, Tac-tic à la rue de Pinguoins publicada na coletânea 4 petites comédies pour une Comédie (2004), conta a história de um rapaz que acorda em um corpo de moça. O mal-estar com esse corpo que não é seu desperta várias inquietações e reflexões sobre questões sexuais, emocionais,
psicológicas e sociais do fato de ser um homem em um corpo de mulher.
Tac-tic na rua dos Pinguins
Gustave Akakpo
Tradução: Maria da Glória Magalhães dos Reis,
Danilo de Sousa,
Íslia Vaz


Que que eu tô fazendo aqui? Que fazem esses olhos jogados na minha direção? Que eles estão procurando?
Eu sei. Não, acho que não.
Como saber o que fazer quando você tem a impressão que a cada passo, vários olhares te esquartejam, como se essas duplas de olhos soubessem.

- Vai na esquina pra ver se eu tô lá!

Tenho vontade de explodir esse grito na fuça deles, nesses olhos cortantes que me furam até o gozo.
Já tá de noite. Três horas – já? – Como a escuridãoengoliu a cidade. Eles, eles sabem por que eu me encontro aqui diante deles. Estão esperando um espetáculo.
É por isso que vieram, comportadamente sentados, gozando de me penetrar.
Não, eles não sabem.
Estou sozinho, o mais sozinho do mundo. Mas...
Uma mudança! Sim, alguma coisa que... bum, e minha vida não seria mais esse corredor sem pé nem cabeça, um beco sem saída, avançando com a cabeça baixa como um burro contra uma parede.
O que mais querer além de um pequeno bum nesta porcaria de vida, quando se tem a minha idade, mas que não se aparenta, essa bela idade. Porque a preguiça. O corpo que correu mais rápido que o tempo.
Mas, qualquer coisa, menos isso.
Vinte anos: eu fixava eles na minha cabeça com um monte de projetos, tudo o que se imagina que a gente pode aprontar nessa “bela idade” no momento em que  a gente ouve os que já digeriram ela, eles que falam disso com aquele flashback agradavelmente picante nos olhos.
Eu, meus vinte e tantos anos passados, do futuro, só vejo poeira.
Bem que eu tentei me projetar no futuro. Mas eu dou de caracom um destino imbecil e teimoso como... como uma estátua de ditador africano ou um míssil de desastror americano.
Agora, eu fiquei patético. A impressão de me esvaziar como num espetáculo diante desses olhos que sabem tudo de mim, e apesar disso me expõe ainda mais.
Não. Eles não sabem: eles não podem nada – absolutamente nada- eles só têm a mim para se preocupar... porque mesmo eu... difícil de acreditar.
É claro, outra coisa, eu sempre desejei. Mas tudo menos isso.

Eu me chamo Pascal. Tenho que ficar me repetindo isso muitas vezes, senão eu me deixo roer por essa farsa. Pascal sem “e”. Isso também, é preciso deixar claro. Sou do sexo masculino; eu sei, não dá pra perceber muito...
Merda, uma bela manhã se encontrar na cama em um corpo de mulher! Eu me senti em bons lençóis.
Enfiar na cabeça que este corpo, estes peitos, estes lábios e tudo o que veio numa bela manhã não passa de uma grande brincadeira. Não acreditar na imagem que o espelho me joga! Puro drama. O diretor surgirá de uma hora para outra, “Corta! É pra câmera, crianças!”, e eu voltarei a morar na minha vida habitual de rapaz de 20 anos.

Não, esse corpo persiste. Cinco dias já, e as noites, sombrias, todos esses olhares que eu adivinho sobre mim como flechas pontudas. Essas pontas afiadas se excitam ao ver um predador transformado em uma presa fresquinha. Cinco dias já dentro do abismo da farsa que passa. E, no entanto, me recuso a acreditar: com certeza estou num palco diante de um público que, no final, vai me aplaudir.  E eu, no meu camarim, o espelho me oferecerá enfim minha cara de homem. “Não o cara genial do século, mas charmoso, e com uma nota 7 na escala de boniteza”, como dizem sempre as meninas.Mas ela, ela tá sempre lá, aquela que se diz eu e gostaria que a chamassem de Pascale com “e”.
Eu me chamo Pascale. Pascale com “e”. Eu fico me repetindo.
Desde que aconteceu, eu me repito sempre. Tenho que repetir  já que ninguém parece se lembrar. Isso me deixa louca.
Minha mãe. Até mesmo minha mãe. No momento em que me percebi, naquela manhã, num corpo de homem, pensei: ela vai imaginar que eu estou trazendo rapazes para o meu quarto.
Já tenho idade pra isso:
- Vinte anos, você não vai arrumar um namoradinho, não, minha querida?
Eu penso toda vez: não mamãe, não me enche o saco... sem responder nada. Mas ela sabe que eles não me interessam.
Então, pensei: se ela der de frente com esse cara no meu quarto, ela vai pensar besteira. Eu não gostaria que ela ficasse imaginando que fico fornicando bobagens nas costas dela. Mas “Bom dia”, ela me disse quando me viu naquela manhã. “Seu pai ligou”, ela continuou enquanto eu alucinava de ver ela falar comigo como se nada tivesse acontecido.
- Ele se lembrou bruscamente que tem um filho-homem, seu pai, depois de 10 anos de silêncio... e ele te mandou isso aqui pelo seu aniversário. Ele errou a data, é claro. Se te interessar você pode abrir, senão tem sempre espaço na lixeira.

Isso é a cara da minha mãe: uma delicadeza à flor da pele. Mas minha mãe, nesse nível de mudança, até ela: achar normal de me ver como homem... E o presente do meu pai: um par de sapatos masculinos!
Vasculhei minhas coisas, meu quarto; era um quarto de homem! Me sufoquei.
Desde então, o ar falta na minha respiração. Três dias já que eu saí de casa e que não olho para trás. Esse pesadelo – não saber mais nada de mim – me empurra para.... não sei.

Parar para dormir em algum lugar. Um rapaz bem que pode ficar tranquilo aqui. Uma garota teria acendido os olhares, despertado apetites. Mas em um corpo de rapaz, não há por que se roer de preocupação.

Preciso de ar!
Merda, estou andando igual mulherzinha. Farejo olhares esfomeados. Ao redor, por toda a parte nos mínimos cantinhos. O que um rapaz pensa de outro que faz tudo como uma menina, nesta hora da noite, em um lugar como este? “Uma presa”, ele se diz talvez lambendo os beiços caídos e o desejo hasteado como um poste. Não estou a salvo neste lugar perverso e mal falado.

Me comportar como um rapaz? De jeito nenhum. Eu sou Pascale com “e”. Está escuro , mas percebo  seus olhares, como se eu estivessenum espetáculo. Tenho até mesmo a sensação de que se eu esticasse a mão, um pouco, até ali, eu tocaria uma cabeça. Mas não, não tenho ninguém ao alcance da minha mão. Só a falta de ar ao alcance da garganta.
Preciso de ar, cada vez mais à medida que as vontades deles engordam.Eu tenho que conseguir, no mínimo por esta noite para que eu possa descansar aqui tranquilo. Fazer de conta que sou um rapaz para que os olhares deles se deitem como um cachorro obediente.
Eles imaginam a moça, então eles se excitam. Tenho que gritar para eles:

Eu me chamo Pascal sem “e”, sou um homem. Nem pensem em tentar nem mesmo uma pequena aproximação. Seus olhares de pau duro me bicam a pele e eu conheço a perversidade de vocês. Então, braços ao longo do corpo, pés nos lugares e o resto em repouso. Deitado!
Eles me ruminam, eu sei. Sou um rapaz, então, obrigatoriamente uma moça sozinha, de noite, num lugar como este. Eu mais do que ninguém conheçoo desejo que ela faz subir pelas entranhas.
Não ... estou sozinho, eu sei. Esses olhos? Só impressão.
Se apenas tudo isso – eu, esta noite, este corpo de outra pessoa – pudesse ser só impressão!
Pois isso não acontece na realidade, se ver transformado em mulher da noite para o dia. Nunca li em nenhum lugar que isso já aconteceu com alguém de uma só vez.
Merda, me remói o homem interior, essa sensação de ser outro!

Faz dez dias, eu me lembro, eu estava na manifestação na grande Praça da Independência. Eu digo sempre: “Podem contar comigo” em todas as manifestações contra a mundialização, a amerização, a exterminação, a pauperização, a bobalização, a genocidação... todo tipo de exação.Então assim, eu sei, deixei marcas, fotos de mim-homem. Eu vou conseguir encontrar elas em velhos jornais. No meu quarto, naquela manhã, tinha apenas fotos de mulheres, de mim-mulher, e minhas coisas. Bem no meu quarto!
Que besteira; é de se suicidar de rir!
Talvez eu devesse falar com ela, ela que tomou meu lugar; eu conseguiria talvez convencê-la. No teatro isso acontece frequentemente, um personagem que fala consigo mesmo. Então por que não na realidade, esta realidade que está brincando comigo.
Bom, vou falar com ela.

Ela (ele): Bom dia, Senhora! Eu me chamo Pascal sem “e”.
Ele (ela): Bom dia, Senhor! Eu me chamo Pascale com “e”.
Ela (ele): Tenho 20 anos, moro na Rua dos Pinguins.
Ele (ela): Eu também moro na Rua dos Pinguins, meu senhor.
Ela (ele): Eu moro no número 27.
Ele (ela): 27? Mas eu também, senhor. O senhor não vai me dizer que a sua casa é de cor laranja...
Ela (ele): É.
Ele (ela): Com um portão preto.
Ela (ele): Sim.
Ele (ela): E um código 27 4 27.
Ela (ele): Isso.
Ele (ela): E o senhor mora com a sua mãe?
Ela (ele):Hum-hum.
Ele (ela): E seu pai foi embora?
Ela (ele): Foi.
Ele (ela): O senhor gosta de chocolate?
Ela (ele): Gosto.
Ele (ela): Que estranhas coincidências!
Ela (ele): É verdade.
Ele (ela): Não são coincidências, Senhor, você pegou o meu lugar!
Ela (ele): Ei! Eu ia dizer a mesma coisa.

Já faz três dias que  tentei falar comigo. Não não, ou melhor, falar com ele que tomou meu lugar. Ainda não sei o que se passa na cabeça de um garoto.

Preciso de ar.

Acabei de falar comigo mesmo. Não não, ou melhor, falar com ela que tomou meu lugar. Isso não mudou nada. Ah... de repente, nem mesmo falei com ela. Só imaginei, para me dar a porra da ilusão de avançar para uma luz no fim do túnel.

De qualquer forma, não posso aceitar essa palhaçada, este corpo de mulher... dizer para mim mesmo que é o meu, conhece-lo, explorá-lo... eu que, rapaz, viajava nos corpos de outras garotas.

Não tive coragem de ir para a faculdade, nem para casa de amigos, nem de outras pessoas além da minha mãe que me conhecem, só para ver se eles se lembram de mim-homem.
Carole, ela deve estar pensando: “Que filho da mãe, ele é como todos os caras, me deu um bolo.”

Não, eu não fui ao encontro, mas eu te liguei, Carole, naquela maldita manhã, no teu celular. Eu tentei. Na véspera, a gente tinha se encontrado: amor à primeira vista: eu nem podia acreditar! E no dia seguinte: a gente ia se ver de novo; nossa primeira noite juntos, eu sentia, ia rolar, sem forçar a barra. Nossas vontades já tinham se prometido coisas, era só concretizar, tranquilamente.
Então naquela manhã, depois de tudo, pensei em você, no encontro daquela noite; depois eu disse para mim mesmo: Se minha mãe acha normal me ver como mulher... talvez eu nem tivesse te visto na véspera, ou talvez você fosse o homem e eu a mulher!
Achei seu número com o seu nome; Carole, não parece nome de homem. Então eu te liguei. No telefone a sua voz de mulher, fiquei com um nó nas tripas, mas precisava ir até o fim; eu perguntei se você era Carole.
- Sou.
- Me desculpa mas... você é realmente uma mulher?
E você, você pensou muito alto: Você é uma idiota ou o que?
Onde já se viu um homem se chamar Carole:
Joguei longe meu telefone, saí de casa na mesma hora, a loucura gritava na minha cabeça. Merda, além do mais, eu tava sentindo: com Carole, não seria como com as outras meninas.
Eu deveria talvez tentar falar com outros amigos, ver se, com alguns, não aconteceu a mesma palhaçada...

Sim, é exatamente o que eu deveria fazer: falar com amigos, pessoas que além da minha mãe me conhecem.

Fugi de casa. Eu me sentia tão louca que nem parei para pensar. Tenho que encontrar alguém que se lembre de mim-mulher.

É verdade que eu estava sentindo a vida me pegando pela garganta: minha mãe abandonada pelo meu pai, todos os meus amigos cujos pais divorciaram, os trambiques dos chefes de estado que deveriam nos servir de exemplo, os atentados, as guerras, a fome no mundo... tudo isso me quebrava a confiança no futuro e me jogava na cara a vontade de alguma coisa que mudaria tudo.

Mas ... tudo menos essa farsa.

Está chegando alguém. Um rapaz. Sem aquele ar predador. Um pouco tímido.

Ela (ele): Boa noite.
Ele (ela): Boa noite. Meu nome é Pascal.
Ela (ele): Que engraçado, eu também me chamo Pascale, com “e”, é claro.

Congresso Internazionale Culture e Letterature in dialogo: identità in movimento

          Dal 12 al 14 maggio Perugia e Assisi vedranno l’arrivo di almeno 230 fra scrittori, ricercatori e professori universitari di molti paesi, fra i quali Brasile, Portogallo, Francia, Germania, Ungheria, Romania, Colombia, Stati Uniti e Cina, che parteciperanno al Congresso Internazionale Culture e Letterature in dialogo: identità in movimento, organizzato dal CILBRA, Centro di Studi Comparati Italo-Luso-Brasiliani, che ha sede presso il Dipartimento di Lettere dell’Università degli Studi di Perugia. L’evento si inerisce fra le attività dei Corsi di Lingua Portoghese e di Letterature Portoghese e Brasiliana di questo Dipartimento e si realizza in collaborazione con tre grandi università brasiliane, l’Universidade de Brasília, l’Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e l’Universidade Federal de Goiás, e ha il patrocinio dell’Itamaraty, dell’Ambasciata del Brasile a Roma, dell’Ambasciata del Portogallo in Italia, del Comune di Perugia, dell’Organização Educacional Barão de Mauá e dell’Universidade de Santa Cruz do Sul.
   Il Congresso ha come obiettivo rimarcare l’importanza dell’Italia e, in particolare, dell’Umbria, nell’attuale discussione sui fenomeni migratori e sul contatto tra culture, società, letterature e lingue, mettendo a fuoco anche questioni come l’identità dei popoli coinvolti in tali fenomeni e la difficoltà del confronto con l’Altro. In un momento come questo, di spostamenti di popolazioni da un continente all’altro, parlare di questioni connesse a tali eventi con un’ottica comparatista e con gli strumenti teorici fornitici dai nostri ambiti di ricerca, che sono quelli delle lingue, letterature e culture italo-luso-brasiliane, potrà contribuire alla riflessione sulle dinamiche connesse a un fenomeno di così vaste proporzioni che coinvolge individui, famiglie e popolazioni intere che si spostano dall’est all’ovest e dal sud al nord del mondo, in fuga da conflitti e guerre, persecuzioni etniche e religiose, carestie e fame, cercando migliori condizioni di vita in altri paesi e continenti. I temi trattati non sono circoscritti al mondo lusofono, ma si costituiscono come riflessione complessa e articolata sui fenomeni dei contatti linguistici e letterari tra diverse realtà culturali del passato e del presente.
        I primi due giorni – 12 e 13 maggio – il Congresso si svolgerà a Perugia, fra Palazzo dei Priori e Palazzo Manzoni (sede del Dipartimento di Lettere, a Piazza Morlacchi) e l’ultimo giorno – 14 maggio – ad Assisi, a Palazzo Bernabei (Via S.Francesco, 19). Oltre al programma più strettamente scientifico, è previsto un Festival Internazionale di Poesia dal titolo “Incontri con la Poesia del Mondo” che, in collaborazione con Umbria Poesia, si terrà il 13 maggio a Perugia (negli spazi di Umbrò, Via S.Ercolano 2) e il 14 maggio ad Assisi (a Palazzo Barnabei), con la partecipazione di 14 poeti di vari paesi, nonché un concerto di due musicisti, l’italiana Noemi Nori e il brasiliano Elcio Lucas, il 12 maggio, alle 20:30 a Perugia (Umbrò), ad accesso libero. Tutti gli eventi previsti sono aperti al pubblico e completamente gratuiti. Si possono iscrivere gli studenti dell’Università degli Studi di Perugia (a quelli del Corso di Laurea in Lingue e Letterature Straniere saranno riconosciuti da due a tre crediti), i professori e tutti quelli interessati a tali tematiche. Per maggiori informazioni e per la programmazione completa e dettagliata del Congresso, consultare il sito www.cilbra.it

Resumos enviados:
    A negação do pertencimento: a imagem do exílio em Edward Said e em Tzvetan Todorov ou O exílio como negação em Said e Todorov 
                                                                                                  Tarsilla Couto de Brito (D/UFG)

A dolorosa realidade dos fluxos migratórios que herdamos do século XX produziu representações literárias que desestabilizaram ideais como identidade e alteridade em diferentes sistemas literários. Não demorou muito para que a "República das letras" reverberasse tais transformações, chegando-se a cunhar a expressão "Guerras Culturais" (cf. Terry Eagleton em A ideia de cultura, 2011; Teixeira Coelho em Guerras Culturais, 1999Joan DeJean em Antigos contra Modernos, 2005 ): trata-se da crítica àquela concepção universalizante de Cultura e da conflituosa história de sua substituição por uma visada pluralista apoiada em "culturas" com c minúsculo e no plural. Dentro desse debate, em que se desenvolveram reflexões teóricas, reelaborações conceituais e querelas que alteraram para sempre os estudos literários e mais especificamente os estudos comparados, propõe-se uma revisão do tropo exílio, que dialoga diretamente com a realidade dos fluxos migratórios e de suas consequências para o pensamento sobre literatura, a partir dos trabalhos de Edward Said (Reflexões sobre o exílio, 2003; Cultura e imperialismo, 2009; Orientalismo, 2007; Humanismo e crítica democrática, 2002) e de Tzvetan Todorov (A conquista da América, 2010; O homem desenraizado, 1999; O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações, 2010; A crítica da crítica, 2012).

                 A experiência do exílio na psicanálise e na literatura
                                                                                                     Silvana Matias Freire (D/UFG)

     O fenômeno migratório parece ser constitutivo da história da humanidade. Em alguns períodos esse fenômeno é menos visível, em outros se evidencia. As razões para esse tipo de deslocamento, de populações inteiras ou de um sujeito, são variadas, dentre elas podemos citar as guerras, as perseguições (étnicas, religiosas ou políticas), a fome, os desastres naturais ou o desejo da diferença. A partir dessa última razão, propomos uma reflexão sobre o ponto em que as experiências do exílio e do estranho se aproximam da experiência da psicanálise freudiana. Dois fragmentos retirados da mitologia bíblica me servirão como referência. Um deles diz respeito à criação do homem e o outro à história de êxodo do povo hebreu. No confronto dessas duas referências surgem traços de uma desidentificação, de uma não-coincidência, de um não-idêntico, de um desejo da diferença que estão implicados na clínica psicanalítica. Discutirei a pertinência de analisar textos literários tendo como referência a convergência das experiências acima mencionadas. Minhas principais referências teóricas são Sigmund Freud (O estranho, [1996]1919; Moisés e o monoteísmo, [1996] 1937), Shoshana Felman (La folie et la chose littéraire, 1978) e Bety Fuks (Freud e a judeidade: a vocação do exílio, 2000).

O homem desenraizado: a identidade do exílio em Tzvetan Todorov                                                                                                                                           
                                                                                                    Débora Lucas Duarte (G/UFG)

As dinâmicas de migração têm se intensificado a partir do séc. XX, e surgem principalmente do conflito entre culturas ocidentais e orientais, sendo de cunho político, étnico ou religioso. Pensar as causas e os efeitos desses movimentos tem sido motivo de reflexão para o teórico Tzvetan Todorov que ilustra e discute a partir da sua própria experiência de exilado como são tratadas as questões do medo, do mal estar e da identidade nesse novo lugar de não pertencimento. Todorov coloca em xeque a fixidez identitária desse sujeito por ele nomeado como “desenraizado”. Propõe-se, neste trabalho, analisar como essas questões dão ensejo para uma reflexão dos conflitos atuais e de que forma a concepção de identidade fixa é problemática ao se pensar o mundo contemporâneo e seus movimentos migratórios como obstáculo ao diálogo entre as diferentes culturas. Essas reflexões serão realizadas a partir da leitura de duas obras de Todorov: O homem desenraizado (1996) e O medo dos bárbaros (2010).

domingo, 17 de abril de 2016

RESUMOS DAS COMUNICAÇÕES DO I ENCONTRO DE CRÍTICA E TRADUÇÃO DO EXÍLIO



PENSAR A TRADUÇÃO COMO CRÍTICA DO EXÍLIO E POÉTICA DO DEVIR

Alice Maria de Araújo Ferreira (UnB-LET-PosTrad)

Traduzir é instalar-se no espaço do equívoco e habitá-lo.
Viveiro de Castro, Metáfisicas Canibais (2009, p. 90).

O título é um pouco pretensioso, mas sobretudo ousado, até porque pensar do/no exílio é ter um pensamento ousado, como é ousado questionar, interrogar, re-pensar. Nossa discussão não se baseia em uma teoria, enquanto discurso pre-estabelecido, mas numa interrogação e numa ruptura. São três pontos (de vista) que não se opõem, por isso não caracterizam três partes, mas se implicam e se tensionam:
1. Pensar a tradução como crítica do exílio é concebê-la não mais como passagem ou ponte, porque essas metáforas supõem que há algo independente da forma (poética) a ser levado do outro lado, e que os dois lados são sistemas fechados.
2. O traduzir nos põe frente a uma alteridade/anterioridade (linguística, histórica, geográfica, subjetiva, cultural) ao mesmo tempo que nos põe frente a nos-mesmo. O encontro provocado pelo traduzir cria uma tensão, logo movimento onde tudo é instável e imprevisível, um devir, nos termos de Deleuze e Guatarri.
3. As concepções do traduzir são contemporâneas das questões sobre a linguagem e das relações geopolíticas. Essa discussão nos leva a pensar sobre a renúncia e seu consentimento na tradução da diferença.

Pensar o processo de tradução a partir de uma crítica do exílio nos leva a pensar a tradução não mais como passagem entre dois sistemas fechados, mas enquanto encontro que provoca descentramento e estranhamento em que transformando o outro me transformo. Antropofagicamente, poderia dizer que ao devorar o texto-poética que traduzo, sou, ao mesmo tempo, devorado por ele.
Ao trazer a cultura para dentro do sistema linguística, a antropolinguística estruturalista (Sapir/Whorf) aponta para sistemas de valores fechados e, assim, para a dita intraduzibilidade. Pois cada cultura vendo o mundo a partir de sua própria língua seria incapaz de dizê-lo de outro modo, com outras cores, com outros ritmos. Essa perspectiva nega o aspecto histórico das línguas e culturas que mudam entrando em contato umas com as outras (para uma concepção essencialista e de pureza esse contato pode ser visto como nefasto e/ou degenerativo). Nessa perspectiva, a tradução opera a passagem de um sentido de um sistema de valores para outro, apagando as diferenças, trazendo para o mesmo, para o espelho, naturalizando. Berman (1984, 2007) chama essa tradução de etnocêntrica, Meschonnic (1999) fala em anexação, Venuti (2002) em domesticação, nos, em tradução narcissíca. A “boa tradução” nesse caso, seria aquela que não causa estranhamento na minha língua, que naturalize o texto (e sua poética) ao ponto de não ser percebida. Traduzindo dessa forma, estamos disposto a transformar o outro mas não a nos transformar com ele, a acolhe-lo. Em determinadas épocas e lugares, acreditou-se até que traduzindo o outro na minha língua eu o melhoro, clarifico-o. A tradução para determinadas línguas (ditas de prestígios históricos) enobrece e clarifica o confuso do outro, o incompreensivo do que pensa diferente, de outra forma.
As concepções modernas inauguradas por Benjamin na Tarefa-renúncia do tradutor (2008), e mais tarde com Meschonnic e sua poética do traduzir (1999), Berman na Tradução e a Letra (2007), Venuti denunciando os Escândalos da Tradução (2002), Haroldo de Campos com sua concepção antropófaga de transcriação (1967, 1992), levaram os estudos da tradução a re-pensar a relação com outros modos de dizer em termos poéticos, éticos, históricos.
Benjamin definindo a tradução como forma e transformação vê nela a possibilidade de linguagem pura (reine sprache) na fruição/complementação das línguas e dos discursos.  Edouard Glissant, em termos benjaminianos a considera uma das artes mais importante da contemporaneidade (e do futuro) e alerta:
“Doravante, o que toda tradução sugere em seu princípio mesmo, através da própria passagem que ela realizaria de uma língua para a outra, é a soberania de todas as línguas do mundo. E, por essa razão, a tradução é o indício e a evidência de que temos que conceber em nosso imaginário essa totalidade das línguas. Da mesma forma que o escritor realiza essa totalidade, doravante, através da prática de sua língua de expressão, o tradutor manifesta essa totalidade através da passagem de uma língua para uma outra, sendo confrontado com a unicidade de cada uma dessas línguas.” (GLISSANT, 2001, p. 48).

O sujeito tradutor, leitor e escritor, age como agente de contato no mundo e o traduzir se torna uma prática que mestiça as culturas, as épocas, as línguas. Arte do cruzamento que aspira a totalidade mundo. Nesse sentido, a tradução é uma poética fundamental para uma crítica da errância, da vertigem, do imprevisível, enfim do exílio. Glissant a define enquanto “arte da fuga” em que a primeira língua não se apaga na outra e nem a segunda renuncia a se apresentar: “A tradução é fuga, o que significa de uma forma belíssima, renúncia. O que talvez seja mais necessário adivinhar no ato de traduzir é a beleza dessa renúncia.” (2001, p. 49)
A concepção benjaminiana de tarefa-renúncia se liga hoje a questão do consentimento dessa renúncia, já que ela constitui a parte de si mesmo que se abandona, em toda e qualquer poética, ao outro. A renúncia é um modo de ação, de consentimento ao abandono para se abrir ao diferente, é um pensar crítico, do exílio, do movimento, da errância, e da mestiçagem.
Nessa (des)territorialização do pensamento não há mais “ser”, essência. A tradução-devir é um movimento perpétuo de interpenetrabilidade cultural e linguística onde a definição do “ser” é impossível: “O ser é uma grande, nobre e incomensurável invenção do ocidente, e particularmente da filosofia grega.” (GLISSANT, 2001, P. 124). É na imprevisibilidade do “sendo”, nos diz Glissant, do devir que somos levados a abandonar os pensamentos de sistema e de dualidades platônicas e pensar a tradução e as poéticas contemporâneas no âmbito da interrogação/interpelação, do deslocamento, das ambiguidades, dos estranhamentos e, como diz Viveiros de Castro, dos equivocos:
 “Traduzir é presumir que há desde sempre e para sempre um equívoco; é comunicar pela diferença, em vez de silenciar o Outro ao presumir uma univocidade originária e uma redundância última _uma semelhança essencial_ entre o que ele e nos “estamos dizendo” (Viveiros de Castro, Metáfisicas Canibais, 2009, p.91)

O sujeito da poética mestiça, o exilado, é múltiplo, não se sabe de onde vem porque ele mesmo não sabe e não controla os lugares do seu discurso. Pensar esse múltiplo é questionar as identidades-raízes sem abandonar a noção de identidade enquanto conquista da modernidade, mas ceder lugar ao que Glissant denomina, na esteira de Deleuze e Guatarri de “identidades-rizomas”:
“Não se trata de desenraizar, mas sim de conceber a raiz como menos intolerante, menos sectária: uma identidade-raiz que não mata à sua volta, mas que ao contrario estende suas ramificações em direção aos outros. Ou seja, é aquilo que chamo de identidade-rizoma, a partir de Deleuze e Guatarri.” (Glissant, 2001, p. 130).

Na crítica do exílio, a noção de classicismo tende, então, a desaparecer. A história e historiografia da literatura, assim como a teoria e crítica literária, especialmente no mundo (chamado) ocidental, foram tensionadas segundo Edward Said (2011) pela ideia de que os valores de toda literatura alicerçam-se na não-dita pretensão de se tornar valores universais válidos para todos. Na opinião de Glissant que também é a nossa, “pensar que o seu próprio valor participa de um entrecruzamento de valores da totalidade mundo, é um projeto muito maior, nobre e generoso do que o projeto de tentar fazer com que o seu próprio valor se torne válido para o mundo inteiro”, e mais, “Penso que precisamos abandonar a ideia do universal” (Glissant, 2001, p. 134).
Os discursos a pretensão universal se fundamentam nas noções de representação e de identidade e impedem/impossibilitam o exercício da crítica em prol de um pensamento (ainda) único: “Derrière la representation il y a toujours une identité. Mais derrière l’identité il n’y a rien, elle est auto-fondatrice. Ou alors, il y a Dieu!!??” (LAPLANTINE, 2010) [Atrás da representação, há sempre uma identidade. Mas atrás da identidade não há nada, ela é auto-fundadora. Ou então, há Deus!!??]. O sentido da representação continua situado na identidade-raiz (um sentido verdadeiro da origem única, pura) quando o sentido é movidiço e não se dá na relação de pura presença.
Falar de intraduzibilidade, de indizível e inefável, supõe uma impossível compreensão e uma imobilidade (seria melhor cada um ficar onde está). Há tradução porque as línguas são diferentes, mas elas podem se compreender e se traduzir umas nas outras, porque não são impermeáveis, fechadas nela-mesmas. Jakobson no seu ensaio Aspectos linguísticos da tradução já tensiona: “As línguas diferem no que elas devem expressar não nos que elas podem expressar” (2003, p. 69), e grifa os dois modalizantes, poder/dever. 
Laplantine faz a crítica às noções de representação e identidade, e apresenta o conceito de mestiçagem:
“Le métissage c’est un concept, c’est un percept, c’est un affect. Je dirais que c’est un décept aussi. Il y a de la deception, il y a du manqué, de l’arrachement, pas seulement de la jubilation solaire, de la satisfaction, etc,. le métissage commence à partir du moment où l’on fait l’expérience de l’étrangeté.” (LAPLANTINE, 2010, s/p)

[A mestiçagem é um conceito, é um percepto, é um afecto. Diria até que é um decepto também. Há algo de decepção, há falta, arrancamento, não só jubilação solar, da satisfação, etc. A mestiçagem começa a partir do momento em que fazemos experiencia do estrangeiro.]
E Alexis Nouss (2001, s/p) acrescenta, a mestiçagem:
“ne doit pas être confondu avec le mélange, qui est fusion, ou l'hybridité, qui produit un nouvel ensemble. Dans le devenir métis, imprévisible et instable, jamais accompli et jamais définitif, les composantes conservent leur identité et leur histoire”. (Nouss, A. 2001)

[não deve ser confundida com a mistura, que é fusão, ou a hibridez que produz um novo conjunto. No devir mestiço, imprevisível e instável, nunca realizado e nunca definitivo, os componentes conservam sua identidade e sua história.]

A disjunção entre alteridade e identidade aponta para fronteiras intransponíveis, quando não só somos outro, mas o outro habita em nós. A mestiçagem surge do encontro e do reconhecimento da alteridade em nos-mesmos, não em oposição à identidade. Meschonnic nos lembra que:
“À notre époque —et peut-être que seule la traduction comme terrain de pratique et de réflexion peut le montrer —on commence [...] à passer d ́une opposition entre identité et altérité à la reconnaissance d ́une intéraction entre identité et altérité, telle que l’identité apparaît comme n’advenant que par l’altérité, par une pluralisation dans la logique des rapports interculturels.” (MESCHONNIC, 1999, p. 73).
                     
[Em nossa época _ e talvez sómente a tradução como terreno de prática e de reflexão possa mostra-lo_ começa-se a passar de uma oposição entre identidade e alteridade ao reconhecimento de uma interação entre identidade e alteridade, tal que a identidade apareça como advindo sómente pela alteridade, por uma pluralização na lógica das relações interculturais.]

A noção de alteridade não oferece garantias semânticas, e levanta a questão do “outro” como sendo ainda considerado o de “fora” frente a um de “dentro”. Além disso, a alteridade é fugaz. A alteridade altera, i.e., o outro perturba, transforma, inclusive o modo de dizer e o modo de pensar.
Para Meschonnic, a relação à alteridade não passa pela anexação: “pour comprendre l’autre, il ne faut pas se l’annexer, mais devenir son hôte [...] Comprendre quelque chose d’autre, ce n’est pas s’annexer la chose, c’est se transférer par un décentrement au centre même de l’autre” (Meschonnic, 1973: 411-412) [para compreender o outro, não se deve anexá-lo, mas tornar-se seu anfitrião […]. Compreender outra coisa, não é anexar a coisa, é se tranferir por um descentramento no centro mesmo do outro.].
Para Berman, a tradução que se torna a “albergue do estrangeiro” se protege das tendências etnocêntricas. A abertura à alteridade predispõe a tradução ao dialogo das culturas. Esta abertura se opõe à violência, à conquista da “missão civilizadora” nos planos discursivos e militares (SAID, 2011, 2003). Essa aproximação cria uma relação indireta entre as práticas tradutórias e as práticas coercitivas da colonização cujo objetivo era a anexação do outro em que a relação de força suscita questões de natureza ética. A transformação do mesmo pela mediação do estrangeiro é prova, pela abertura a uma relação com o outro, de uma visada ética preconizada por Berman. O tradutor precisa fazer prova de uma sensibilidade política e ideológica e essa sensibilidade passa por uma ética e uma analítica:
“À l’éthique de la traduction doit s’ajouter une analytique. Le traducteur doit se mettre en analyse, repérer les systèmes de déformation qui menacent sa pratique et opèrent de façon inconsciente au niveau de ses choix linguistiques et littéraires. Systèmes qui relèvent simultanément des régistres de langue, de l’idéologie, de la littérature et du psychisme du traducteur” (Berman 1984, p.19)

[À ética da tradução deve se acrescentar uma analítica. O tradutor deve se por em análise, reparar nos sistemas de deformação que ameaçam sua prática e operam de maneira inconciente no nível das suas escolhas linguisticas e literárias. Sistemas que resultam simultaneamente dos registros de língua, da ideologia, da literatura e do psiquismo do tradutor].

O descentramento da crítica do exílio provoca uma concepção de tradução que passa a ser vista como encontro e mestiçagem (Nouss, 2001) de períodos, culturas, nações e línguas.
A tradução deve ser compreendida como uma atitude que suscita uma epistemologia e uma ética, e se define pela ambiguidade e a heterogeneidade. Ambiguidade porque permite pensar os contrários em termos de reconciliação: não é nem branca, nem preta, e por fruir da liberdade de poder ser as duas em alternância ou não. A heterogeneidade porque cria uma tensão que impede a fixação dos componentes. A Tradução como crítica do exílio cria então uma poética do devir e passa pela lógica do não-pertencer e da heterogeneidade como fator de criatividade.
O Tradutor, escritor paratópico não se fixa na posição do estrangeiro, mas faz do deslocamento um espaço livre onde pode acolher todos os pertencimentos. Estamos no pensamento do exílio, o de ter renunciado ao país natal para melhor entende-lo. A poética migrante cria uma distância com o lugar de onde vem sem no entanto fazer dessa distância um abismo intransponível. A escrita da ambiguidade criada pelo exílio, se compreende por ser ao mesmo tempo singular pelo percurso e múltiplo pela memória.

Alexis Nouss (2001), definindo a tradução como prática mestiça, reconhece que ela se situa entre o mesmo e o outro, nem o mesmo nem o outro, mas é um devir, um dizer que jamais se fecha frente ao dito que produz e que manifesta. Essa tensão oriunda de sua natureza em devir explica e permite o fenômeno das múltiplas traduções de um mesmo texto.
A tradução nesta perspectiva não é uma conversão do outro no mesmo. O traduzir é uma relação que mantemos com outrem, o outro discurso, e se caracteriza por isso como diálogo. As prosas do mundo têm cores, melodias, imagens diferentes e a tradução não deve apagar a diferença, mas forçar nossa língua a falar com outras cores, outros ritmos.
Pensar a tradução como crítica do exílio, é pensá-la a partir de uma po-ética e conceber o processo numa perspectiva dialógica: “L’essence de la traduction est d’être ouverture, dialogue, métissage, décentrement. Elle est mise en rapport, ou ele n’est rien” (BERMAN, 1984, p. 16). [A essência da tradução é de ser abertura, diálogo, mestiçagem, descentramento. Ela é relação ou não é nada].

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