PENSAR A TRADUÇÃO COMO
CRÍTICA DO EXÍLIO E POÉTICA DO DEVIR
Alice Maria de Araújo Ferreira (UnB-LET-PosTrad)
Traduzir
é instalar-se no espaço do equívoco e habitá-lo.
Viveiro de Castro, Metáfisicas Canibais
(2009, p. 90).
O título é um pouco pretensioso, mas sobretudo ousado, até porque
pensar do/no exílio é ter um pensamento ousado, como é ousado questionar,
interrogar, re-pensar. Nossa discussão não se baseia em uma teoria, enquanto
discurso pre-estabelecido, mas numa interrogação e numa ruptura. São três
pontos (de vista) que não se opõem, por isso não caracterizam três partes, mas se
implicam e se tensionam:
1. Pensar a tradução como crítica do exílio é concebê-la não mais
como passagem ou ponte, porque essas metáforas supõem que há algo independente
da forma (poética) a ser levado do outro lado, e que os dois lados são sistemas
fechados.
2. O traduzir nos põe frente a uma alteridade/anterioridade
(linguística, histórica, geográfica, subjetiva, cultural) ao mesmo tempo que
nos põe frente a nos-mesmo. O encontro provocado pelo traduzir cria uma tensão,
logo movimento onde tudo é instável e imprevisível, um devir, nos termos de
Deleuze e Guatarri.
3.
As concepções do traduzir são contemporâneas das questões sobre a linguagem e
das relações geopolíticas. Essa discussão nos leva a pensar sobre a renúncia e
seu consentimento na tradução da diferença.
Pensar o processo de tradução a partir de uma crítica do exílio
nos leva a pensar a tradução não mais como passagem entre dois sistemas
fechados, mas enquanto encontro que provoca descentramento e estranhamento em
que transformando o outro me transformo. Antropofagicamente, poderia dizer que ao
devorar o texto-poética que traduzo, sou, ao mesmo tempo, devorado por ele.
Ao trazer a cultura para dentro do sistema linguística, a
antropolinguística estruturalista (Sapir/Whorf) aponta para sistemas de valores
fechados e, assim, para a dita intraduzibilidade. Pois cada cultura vendo o
mundo a partir de sua própria língua seria incapaz de dizê-lo de outro modo,
com outras cores, com outros ritmos. Essa perspectiva nega o aspecto histórico
das línguas e culturas que mudam entrando em contato umas com as outras (para
uma concepção essencialista e de pureza esse contato pode ser visto como
nefasto e/ou degenerativo). Nessa perspectiva, a tradução opera a passagem de
um sentido de um sistema de valores para outro, apagando as diferenças,
trazendo para o mesmo, para o espelho, naturalizando. Berman (1984, 2007) chama
essa tradução de etnocêntrica, Meschonnic (1999) fala em anexação, Venuti
(2002) em domesticação, nos, em tradução narcissíca. A “boa tradução” nesse
caso, seria aquela que não causa estranhamento na minha língua, que naturalize o
texto (e sua poética) ao ponto de não ser percebida. Traduzindo dessa forma, estamos
disposto a transformar o outro mas não a nos transformar com ele, a acolhe-lo. Em
determinadas épocas e lugares, acreditou-se até que traduzindo o outro na minha
língua eu o melhoro, clarifico-o. A tradução para determinadas línguas (ditas
de prestígios históricos) enobrece e clarifica o confuso do outro, o incompreensivo
do que pensa diferente, de outra forma.
As concepções modernas inauguradas por Benjamin na Tarefa-renúncia do tradutor (2008), e
mais tarde com Meschonnic e sua poética
do traduzir (1999), Berman na Tradução
e a Letra (2007), Venuti denunciando os Escândalos
da Tradução (2002), Haroldo de Campos com sua concepção antropófaga de
transcriação (1967, 1992), levaram os estudos da tradução a re-pensar a relação
com outros modos de dizer em termos poéticos, éticos, históricos.
Benjamin definindo a tradução como forma e transformação vê nela a
possibilidade de linguagem pura (reine
sprache) na fruição/complementação das línguas e dos discursos. Edouard Glissant, em termos benjaminianos a
considera uma das artes mais importante da contemporaneidade (e do futuro) e
alerta:
“Doravante, o que toda tradução sugere em seu princípio mesmo,
através da própria passagem que ela realizaria de uma língua para a outra, é a
soberania de todas as línguas do mundo. E, por essa razão, a tradução é o
indício e a evidência de que temos que conceber em nosso imaginário essa
totalidade das línguas. Da mesma forma que o escritor realiza essa totalidade,
doravante, através da prática de sua língua de expressão, o tradutor manifesta
essa totalidade através da passagem de uma língua para uma outra, sendo
confrontado com a unicidade de cada uma dessas línguas.” (GLISSANT, 2001, p.
48).
O sujeito tradutor, leitor e escritor, age como agente de contato no
mundo e o traduzir se torna uma prática que mestiça as culturas, as épocas, as
línguas. Arte do cruzamento que aspira a totalidade mundo. Nesse sentido, a
tradução é uma poética fundamental para uma crítica da errância, da vertigem,
do imprevisível, enfim do exílio. Glissant a define enquanto “arte da fuga” em
que a primeira língua não se apaga na outra e nem a segunda renuncia a se
apresentar: “A tradução é fuga, o que significa de uma forma belíssima,
renúncia. O que talvez seja mais necessário adivinhar no ato de traduzir é a
beleza dessa renúncia.” (2001, p. 49)
A concepção benjaminiana de tarefa-renúncia se liga hoje a questão
do consentimento dessa renúncia, já que ela constitui a parte de si mesmo que
se abandona, em toda e qualquer poética, ao outro. A renúncia é um modo de
ação, de consentimento ao abandono para se abrir ao diferente, é um pensar crítico,
do exílio, do movimento, da errância, e da mestiçagem.
Nessa (des)territorialização do pensamento não há mais “ser”,
essência. A tradução-devir é um movimento perpétuo de interpenetrabilidade
cultural e linguística onde a definição do “ser” é impossível: “O ser é uma
grande, nobre e incomensurável invenção do ocidente, e particularmente da
filosofia grega.” (GLISSANT, 2001, P. 124). É na imprevisibilidade do “sendo”,
nos diz Glissant, do devir que somos levados a abandonar os pensamentos de
sistema e de dualidades platônicas e pensar a tradução e as poéticas contemporâneas
no âmbito da interrogação/interpelação, do deslocamento, das ambiguidades, dos
estranhamentos e, como diz Viveiros de Castro, dos equivocos:
“Traduzir é presumir que há
desde sempre e para sempre um equívoco; é comunicar pela diferença, em vez de
silenciar o Outro ao presumir uma univocidade originária e uma redundância
última _uma semelhança essencial_ entre o que ele e nos “estamos dizendo”
(Viveiros de Castro, Metáfisicas Canibais, 2009, p.91)
O sujeito da poética mestiça, o exilado, é múltiplo, não se sabe
de onde vem porque ele mesmo não sabe e não controla os lugares do seu discurso.
Pensar esse múltiplo é questionar as identidades-raízes sem abandonar a noção
de identidade enquanto conquista da modernidade, mas ceder lugar ao que
Glissant denomina, na esteira de Deleuze e Guatarri de “identidades-rizomas”:
“Não se trata de desenraizar, mas sim de conceber a raiz como
menos intolerante, menos sectária: uma identidade-raiz que não mata à sua
volta, mas que ao contrario estende suas ramificações em direção aos outros. Ou
seja, é aquilo que chamo de identidade-rizoma, a partir de Deleuze e Guatarri.”
(Glissant, 2001, p. 130).
Na crítica do exílio, a noção de classicismo tende, então, a
desaparecer. A história e historiografia da literatura, assim como a teoria e
crítica literária, especialmente no mundo (chamado) ocidental, foram
tensionadas segundo Edward Said (2011) pela ideia de que os valores de toda
literatura alicerçam-se na não-dita pretensão de se tornar valores universais
válidos para todos. Na opinião de Glissant que também é a nossa, “pensar que o
seu próprio valor participa de um entrecruzamento de valores da totalidade
mundo, é um projeto muito maior, nobre e generoso do que o projeto de tentar
fazer com que o seu próprio valor se torne válido para o mundo inteiro”, e
mais, “Penso que precisamos abandonar a ideia do universal” (Glissant, 2001, p.
134).
Os discursos a pretensão universal se fundamentam nas noções de
representação e de identidade e impedem/impossibilitam o exercício da crítica
em prol de um pensamento (ainda) único: “Derrière
la representation il y a toujours une identité. Mais derrière l’identité il n’y
a rien, elle est auto-fondatrice. Ou alors, il y a Dieu!!??” (LAPLANTINE, 2010)
[Atrás da representação, há sempre uma identidade. Mas atrás da identidade não
há nada, ela é auto-fundadora. Ou então, há Deus!!??]. O sentido da
representação continua situado na identidade-raiz (um sentido verdadeiro da
origem única, pura) quando o sentido é movidiço e não se dá na relação de pura
presença.
Falar
de intraduzibilidade, de indizível e inefável, supõe uma impossível compreensão
e uma imobilidade (seria melhor cada um ficar onde está). Há tradução porque as
línguas são diferentes, mas elas podem se compreender e se traduzir umas nas
outras, porque não são impermeáveis, fechadas nela-mesmas. Jakobson no seu
ensaio Aspectos linguísticos da tradução
já tensiona: “As línguas diferem no que elas devem expressar não nos que elas podem expressar” (2003, p. 69), e grifa os dois modalizantes,
poder/dever.
Laplantine
faz a crítica às noções de representação e identidade, e apresenta o conceito
de mestiçagem:
“Le métissage c’est un concept, c’est un percept,
c’est un affect. Je
dirais que c’est un décept aussi. Il y a de la deception, il y a du manqué, de
l’arrachement, pas seulement de la jubilation solaire, de la satisfaction,
etc,. le métissage commence à partir du moment où l’on fait l’expérience de
l’étrangeté.” (LAPLANTINE, 2010, s/p)
[A
mestiçagem é um conceito, é um percepto, é um afecto. Diria até que é um
decepto também. Há algo de decepção, há falta, arrancamento, não só jubilação
solar, da satisfação, etc. A mestiçagem começa a partir do momento em que
fazemos experiencia do estrangeiro.]
E Alexis Nouss (2001,
s/p) acrescenta, a mestiçagem:
“ne doit pas être confondu
avec le mélange, qui est fusion, ou l'hybridité, qui produit un nouvel
ensemble. Dans le devenir métis, imprévisible et instable, jamais accompli et
jamais définitif, les composantes conservent leur identité et leur histoire”. (Nouss, A. 2001)
[não deve ser confundida com
a mistura, que é fusão, ou a hibridez que produz um novo conjunto. No devir
mestiço, imprevisível e instável, nunca realizado e nunca definitivo, os
componentes conservam sua identidade e sua história.]
A
disjunção entre alteridade e identidade aponta para fronteiras intransponíveis,
quando não só somos outro, mas o outro habita em nós. A mestiçagem surge do
encontro e do reconhecimento da alteridade em nos-mesmos, não em oposição à
identidade. Meschonnic nos lembra que:
“À notre époque —et peut-être que seule la traduction
comme terrain de pratique et de réflexion peut le montrer —on commence [...] à
passer d ́une opposition entre identité et altérité à la reconnaissance d ́une
intéraction entre identité et altérité, telle que l’identité apparaît comme
n’advenant que par l’altérité, par une pluralisation dans la logique des
rapports interculturels.” (MESCHONNIC, 1999, p. 73).
[Em
nossa época _ e talvez sómente a tradução como terreno de prática e de reflexão
possa mostra-lo_ começa-se a passar de uma oposição entre identidade e
alteridade ao reconhecimento de uma interação entre identidade e alteridade,
tal que a identidade apareça como advindo sómente pela alteridade, por uma
pluralização na lógica das relações interculturais.]
A
noção de alteridade não oferece garantias semânticas, e levanta a questão do
“outro” como sendo ainda considerado o de “fora” frente a um de “dentro”. Além
disso, a alteridade é fugaz. A alteridade altera, i.e., o outro perturba,
transforma, inclusive o modo de dizer e o modo de pensar.
Para Meschonnic, a relação à alteridade não passa pela anexação: “pour
comprendre l’autre, il ne faut pas se l’annexer, mais devenir son hôte [...]
Comprendre quelque chose d’autre, ce n’est pas s’annexer la chose, c’est se
transférer par un décentrement au centre même de l’autre” (Meschonnic, 1973:
411-412) [para compreender o outro, não se deve anexá-lo, mas tornar-se seu
anfitrião […]. Compreender outra coisa, não é anexar a coisa, é se tranferir
por um descentramento no centro mesmo do outro.].
Para Berman, a tradução que se torna a “albergue do estrangeiro”
se protege das tendências etnocêntricas. A abertura à alteridade predispõe a
tradução ao dialogo das culturas. Esta abertura se opõe à violência, à
conquista da “missão civilizadora” nos planos discursivos e militares (SAID, 2011,
2003). Essa aproximação cria uma relação indireta entre as práticas tradutórias
e as práticas coercitivas da colonização cujo objetivo era a anexação do outro
em que a relação de força suscita questões de natureza ética. A transformação
do mesmo pela mediação do estrangeiro é prova, pela abertura a uma relação com
o outro, de uma visada ética preconizada por Berman. O tradutor precisa fazer
prova de uma sensibilidade política e ideológica e essa sensibilidade passa por
uma ética e uma analítica:
“À l’éthique de la traduction doit
s’ajouter une analytique. Le traducteur doit se mettre en analyse, repérer les
systèmes de déformation qui menacent sa pratique et opèrent de façon
inconsciente au niveau de ses choix linguistiques et littéraires. Systèmes
qui relèvent simultanément des régistres de langue, de l’idéologie, de la littérature et du psychisme du traducteur” (Berman 1984, p.19)
[À ética da tradução deve se acrescentar uma analítica. O tradutor
deve se por em análise, reparar nos sistemas de deformação que ameaçam sua
prática e operam de maneira inconciente no nível das suas escolhas linguisticas
e literárias. Sistemas que resultam simultaneamente dos registros de língua, da
ideologia, da literatura e do psiquismo do tradutor].
O
descentramento da crítica do exílio provoca uma concepção de tradução que passa
a ser vista como encontro e mestiçagem (Nouss, 2001) de períodos, culturas,
nações e línguas.
A
tradução deve ser compreendida como uma atitude que suscita uma epistemologia e
uma ética, e se define pela ambiguidade e a heterogeneidade. Ambiguidade porque
permite pensar os contrários em termos de reconciliação: não é nem branca, nem
preta, e por fruir da liberdade de poder ser as duas em alternância ou não. A
heterogeneidade porque cria uma tensão que impede a fixação dos componentes. A Tradução
como crítica do exílio cria então uma poética do devir e passa pela lógica do
não-pertencer e da heterogeneidade como fator de criatividade.
O
Tradutor, escritor paratópico não se fixa na posição do estrangeiro, mas faz do
deslocamento um espaço livre onde pode acolher todos os pertencimentos. Estamos
no pensamento do exílio, o de ter renunciado ao país natal para melhor
entende-lo. A poética migrante cria uma distância com o lugar de onde vem sem
no entanto fazer dessa distância um abismo intransponível. A escrita da
ambiguidade criada pelo exílio, se compreende por ser ao mesmo tempo singular
pelo percurso e múltiplo pela memória.
Alexis
Nouss (2001), definindo a tradução como prática mestiça, reconhece que ela se
situa entre o mesmo e o outro, nem o mesmo nem o outro, mas é um devir, um
dizer que jamais se fecha frente ao dito que produz e que manifesta. Essa
tensão oriunda de sua natureza em devir explica e permite o fenômeno das
múltiplas traduções de um mesmo texto.
A
tradução nesta perspectiva não é uma conversão do outro no mesmo. O traduzir é
uma relação que mantemos com outrem, o outro discurso, e se caracteriza por
isso como diálogo. As prosas do mundo têm cores, melodias, imagens diferentes e
a tradução não deve apagar a diferença, mas forçar nossa língua a falar com
outras cores, outros ritmos.
Pensar
a tradução como crítica do exílio, é pensá-la a partir de uma po-ética e
conceber o processo numa perspectiva dialógica: “L’essence de la traduction est
d’être ouverture, dialogue, métissage, décentrement. Elle est
mise en rapport, ou ele n’est rien” (BERMAN, 1984, p. 16). [A essência da tradução é de ser
abertura, diálogo, mestiçagem, descentramento. Ela é relação ou não é nada].
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